Inho
Desde que o mundo é mundo, nós, os escritores, fomos forçados a ouvir um sem-fim de absurdos a respeito de nossa profissão – passou-se o tempo no qual ao menos nos dirigiam um certo temor reverencial, um respeito relutante por sermos os vates, com o poder outorgado pelas Musas de enxergar o passado e o futuro. Uma das (se não A) maiores provas da crescente falta de respeito para com nossa profissão é o fato de nem ao menos ser considerada uma profissão.
Este que vos fala (ou, melhor dizendo, escreve) já ouviu incontáveis barbaridades a respeito da classe dos autores, demasiado enfurecedoras para que sejam aqui mencionadas sem que queira eu destruir a caneta que seguro, mas registro pelo menos uma por ser a grande constante: “Como é bom não precisar trabalhar! A vida de escritor deve ser a coisa mais simples que há. Tão somente se escreve, o dia inteiro!” E por mais que tente explicar-lhes a respeito de minha rotina, quase gravada em pedra, que emprego para que escreva, pelo menos toda semana, qualquer linha de qualquer coisa que seja; que esforços mentais estafam tanto quanto os físicos; que planejar um escrito, seja em prosa ou em verso, exige doses cavalares de concentração e preparo, por mais prodigioso e prolífico que um autor seja – de nada adianta. Um outro argumento, ainda pior que este mas também incluído dentro do anterior, é que a arte como um todo não tem serventia para a sociedade – herança das patacoadas de Platão. Mas uma grande constante dentre as pessoas que defendem estes argumentos é que estão todas aprisionadas num sistema horrível, substrato do capitalismo exacerbado, ao qual dei o nome de sistema do inho.
Longe de ser quem o descobriu, pois é um sistema quase tão velho quanto o Ocidente e até já descrito de forma muito mais magistral por penas como as de Schopenhauer e Raul Seixas, só cri que seria conveniente coligi-lo num todo coeso para que meus leitores possam compará-lo com todos os outros exemplos anteriores que a evolução da sociedade nos legou. Muito que bem – sigamos.
Uma pessoa submetida ao sistema do inho tem algum empreguinho, que pode ser bem pago ou não: afinal, o que lhe importa é receber seu salariozinho das mãos do patrãozinho. Muito provavelmente o empregará para comprar um carrinho e/ou uma casinha para construir uma familiazinha e, quem sabe, eventualmente fazer com eles algum passeiozinho, alguma viagenzinha… Diga-se de passagem, travar um diálogo com essas pessoas é uma experiência fantástica por si só; futilidadezinhas, negocinhos (particularmente entre aqueles que põem um terninho, uma gravatinha e trabalham num cubiculozinho), algum programazinho de TV – mas existem aqueles dotados de grande cultura, sim! Jamais é bom generalizar. Os leitorezinhos ávidos por um bom bestsellerzinho, um bom coachzinho… Preciso me prolongar mais ou isto já é o suficiente para seu entendimentozinho?
Eu, porém, não consigo odiar estes tristes sujeitinhos. O fiz no passado, quando ainda era dotado de uma sensibilidade romântica que cria ser capaz de mudar o mundo, mas hoje até eu precisei prostituir partes desta sensibilidade por uns cobres e não mais a tenho. Retomando o raciocínio, no entanto – tenho mais pena destas pessoas do que raiva. Afinal de contas, deve ser entristecedor viver sem imaginação e engenho – atributos estes que cimentam o status do Homem como um ser constituído à imagem e semelhança de Deus. Deve ser também igualmente estarrecedor viver preso a uma vida de vaidades, correndo atrás do Deus-Dinheiro e de aparências, e não conseguir escapar de um círculo tão vicioso com um bom livro a servir-lhe de mentor. Os nazistas orgulhosamente proclamavam “Arbeit macht frei” – o trabalho liberta. Um grande e santo homem já escreveu que o segredo de uma vida melhor era orar e trabalhar: “Ora et labora!” Mas no fim o trabalho não enobrece – ele embrutece.
Sem o poeta, primus inter pares e o “legislador tácito do mundo”, a árdua tarefa de existir perde sua aventura, e nada nem ninguém nos desviará de nosso propósito.
(São Carlos, 17 de junho de 2024)