Palmitagem e a pilhagem da herança negra
Por: Davi Nunes
A palmitagem interdita, com todas as sua nuances afetivas, a construção da riqueza geracional entre as pessoas negras no Brasil. A eugenia é também cultural, financeira, capitalista. A branquitude sabe bem disso, por isso se apropria, via relação amorosa com pretas e pretos abastados, do legado monetário e cultural negro.
A foto acima da família Gil ilustra bem isso: em duas gerações a fortuna financeira, cultural, afetiva construída pelo gênio de Gilberto Gil e da sua capacidade artística e intelectual de captar e expressar a negritude se tornou herança de netos brancos. Gilberto Gil foi pego pela eugenia brasileira, pela A Redenção de Cam, e se tornou melancolicamente o avô preto de uma família majoritariamente branca.
A Redenção de Cam
Óbvio que a eugenia – política de estado da república brasileira para embranquecer o país – como podemos ver representada no quadro de Modesto Brocos (1852-1936) estruturou a sociedade em todo século XX e a família Gil, como várias outras, não escapou disso. Que fique evidenciado que não culpabilizamos nenhuma pessoa preta, elas foram/são vítimas de uma política de estado que serviu e serve para a manutenção do poder branco.
Palmitagem é um termo que surgiu na primeira década do século XXI. É um arranjo popular que define a eugenia brasileira e a subserviência afetiva de pessoas negras a pessoas brancas.
O esquema da palmitagem não está só no campo do afeto, do simbólico, é financeiro também. Qualquer pessoa preta ou preto no Brasil que ascende economicamente parece que tem que pagar um dote a branquitude – tirar algum branco(a) do fracasso afetivo e econômico.
As pessoas negras, dentro desse esquema de relação proposto pela eugenia, quando galgam posição de destaque na sociedade não conseguem ajudar no crescimento econômico de seu grupo racial, pois a palmitagem estrutural as fazem virar umas três esquinas geracionais e os seus bens materiais e culturais terminam sistematicamente nas mãos da branquitude.
A branquitude no Brasil com relação aos negros ditos vitoriosos tem um comportamento de pilhagem e a sua atuação vai desde o jogador de futebol que tem pouco letramento racial e consciência da formação do próprio país até artistas e intelectuais negros(as).
Vale destacar um pouco o segundo caso, pois no século XX foram várias as situações de pessoas negras importantes para a negritude e para a história do país que sucumbiram a palmitagem, construindo famílias brancas, ou mesmo, via casamento, deixando seus bens culturais e econômicos na mão do parceiro, ou parceira branca. A riqueza, por meio da relação afetiva, é sequestrada sistematicamente do grupo social negro para constituir o poder e o privilégio da branquitude.
Desconfio que isso não se dê somente em relação às vivências heteronormativas, mas também entre a população negra LGBTQI+, vistas como fetiche de uma branquitude que domina o discurso social da dissidência de gênero, e que se apodera das narrativas da diversidade sexual negra para colonizar as formas de relação afetiva entre os corpos negros. Nesse movimento, muitas pessoas negras de notabilidade acabam por ter sua biografia e legado cultural gerido por aquele amigue/parceire brancx.
Quando falamos e escrevemos sobre a importância do afeto entre pessoas negras e entre pessoas pretas que ascende econômica e culturalmente (que no mercado do afeto são as joias mais desejadas e assediadas pela branquitude) é porque se faz necessário que a gente construa através do dengo, do afeto, a nossa riqueza geracional dentro do nosso grupo racial, tão afetado pelas políticas de morte e racismo no Brasil.
Parece-me necessário que a união afetiva entre pessoas negras possa ofertar às próximas gerações uma realidade menos apocalíptica. Mais rica. Nesse sentido, o dengo entre pessoas negras é antídoto contra o auto-ódio, é rasura no racismo, é uma das poucas formas de conter a pilhagem cultural, afetiva, sexual e econômica exercida sistematicamente pela branquitude brasileira.
Davi Nunes é mestre em Estudo de Linguagem – PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livro Infantil. Publicou Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula (2015), republicando uma nova edição do livro pela Editora Malê (2019). Publicou também o livro de contos Zanga (2018) pela Editora Segundo Selo.