A ESCRAVIDÃO SE VÊ NO ESCURO


Em 01/01/1863, nos Estados Unidos, em plena Guerra de Secessão (conflito que teve como estopim o escravismo), o presidente Abraham Lincoln declarou livres todos os escravos dos então 24 estados confederados.
E mais:  por decreto, os possuidores de terra que utlizavam a mão de obra escrava (gratuita) foram obrigados a indenIzar os seus escravos com TERRA, GADO e NUMERÁRIO. 
No dia seguinte, os negros submetidos ao escravismo se tornaram CIDADÃOS NORTE-AMERICANOS, mesmo aqueles que entraram no país, via Flórida, através de imigrações forçadas.   Vale registrar que o comércio de escravos já estava proibido desde 1815, mas  os estados do Sul ainda os traficavam, ilegalmente, em troca de vinhos ou melaço. 
Mesmo os presbíteros de denominações religiosas do Sul - batista, metodista e presbiteriana - reagiram com argumentos bíblicos contra essa decisão "absurda".
No século XIX todos os países do mundo ainda eram relativamente pobres, mesmo os que detinham grandes colônias, a exemplo de Portugal, Espanha e Inglaterra.  Os 13 estados do Norte dos Estados Unidos (Nova Inglaterra) acreditavam no seu crescimento economico através da industrialiação, ainda que dependessem da imigração de mão de obra especializada e remunerada.
Já os 11 estados do Sul acreditavam mais no crescimento alavancado pela mão de obra gratuita propiciada pelo escravismo.
Para não cumprirem aquela exigência legal da abolição, muitos sulistas emigraram para o Brasil, onde a mão de obra escrava era farta e a escravidão permitida.  Escolheram o estado de São Paulo e ali fundaram as cidades de Americana e Santa Bárbara do Oeste. 
A maioria desses escravistas era de protestantes, que trouxeram os seus presbíteros. Como marco inicial, aqui fundaram a Primeira Igreja Batista.  Junto com a bíblia, a aparência de justiça e de amor ao próximo, o que acobertava os ideais escravistas abominados pelo seu país de origem.  Adotaram a mesma estrutura eclesiástica norte-americana, inclusive com cultos em inglês e sem local reservado para negros em seus templos (aqueles que transportavam os seus amos em literas). 
Somente após 1888 (abolição da escravatura no Brasil) os protestantes foram impondo ou adaptando seus costumes à realidade brasileira, evidentemente sem perder a identidade original.  
Não há como contestar que foram esses neo-brasileiros os mais bem informados e maiores incentivadores de abertura de processos judiciais contra o Império, tão logo se deu a assinatura da Carta Régia (que aboliu "formalmente" a escravidão no Brasil). A causa processual, ao contrário do que ocorreu nos EUA, era a exigência, por parte dos grandes proprietários de terra, de o Império indenizar suas despesas com a compra de escravos, eximindo-os de quaisquer responsabilidades numerárias decorrentes da abolição.
Em diversas ocasiões, escrevi sobre esse fato histórico, chamando atenção para o ínfimo e emperrado crescimento econômico do Brasil (que, a partir da Lei de Terras de 26/06/1850, optou por uma arcaica estrutura agrária - latifúndio - e mão de obra não ou minimamente compensada).   Comparava-o, na mesma época, com os EUA, cujo melhor caminho foi a expansão econômica (graças à industrialização, proteção ao mercado e utlização de mão de obra livre e bem remunerada).
Reforçando meus parcos argumentos, Ruy Castro escreveu, em 03/11/2019, na Folha de São Paulo, o artigo "Apagando a si mesmo", mostrando que o poder na mão de alguns implica apagamento de dados preciosos de nossa história. Segue o trecho de seu artigo que mais nos interessa transcrever, a fim de confirmar essa narrativa:
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"...Ruy Barbosa, ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, mandou queimar os arquivos da escravidão.
A medida impediu que os escravocratas exigissem indenização pelos ´prejuízos´ que teriam sofrido com a Abolição.  Ruy Barbosa respondeu que o justo seria indenizar os escravos, mas também privou o Brasil de conhecer mais a fundo uma parte fundamental de sua história
". 
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Dessa situação aflitiva, Ruy Barbosa extrai um dos mais versáteis textos acerca da desonestidade humana.  Em suma, nossos escravos não foram indenizados à época, tampouco libertados de fato.
Diferentemente de Abraham Lincoln, um pobre lenhador que alcançou a presidência do seu país e cuja história é um legado precioso para pesquisa, nós, brasileiros, ainda catamos nas cinzas dos nossos museus cremados algo que suavize a vergonha de nossa conivência e convivência com uma escravidão que não cessa.  Ela está presente em nossos campos, debaixo dos viadutos e em nossas esquinas, becos, favelas e vielas. 
Não negamos nossa origem autoritarista e preconceituosa quando, ainda no íntimo, desqualificamos uma pessoa que tem a pele escura, como se ela fosse culpada dessa "mancha".  Não nos comove terem os nossos antepassados, ainda no século XX, usufruído de seu trabalho (doméstico, principalmente) quase de graça, sem descanso e, não raro, sob tortura.  O Programa Bolsa Família pode ter sido o ensaio para uma indenização retardada, mas que a nossa mentalidade, ainda escravista, questiona e rechaça em papos de finíssimos restaurantes.
Joaquim Nabuco, abolicionista um tanto e propositalmente esquecido de nossa história,  cita em seus discursos na Academia Brasileira de Letras (1910):
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"A escravidão é um mal que não precisa mais ter suas fontes renovadas para atuar em nossa circulação, e que, hoje, dispensa a relação de senhor e escravo, porque já se diluiu no sangue.  Não é, portanto, a simples emancipação dos escravos e ingênuos que há de destruir esses germens, para os quais o organismo adquiriu tamanha afinidadeNão basta o fim do cativeiro, mas a extirpação de suas raízes" (NABUCO, 2003, pg.204).
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Vê-se, no momento,  que essas raízes tendem a rebrotar, por conta de nossa leniência, indiferença e, até mesmo,  incapacidade de desarraigar essa desgraça.     
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 24/11/2019
Reeditado em 14/03/2020
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