A SOCIEDADE DO CANSAÇO

A SOCIEDADE DO CANSAÇO

Artigo enviado pelo Gabriel Florentino, meu filho, após um encontro etílico cultural da confraria dos pardais no Passeio Público (Praça idílica e agradável de Fortaleza), em 21/09/2019.

Caro Gabriel Florentino, ontem estivemos conversando sobre isso com Ayala, Vitória e Cácio no Passeio Público quando afirmei que fiz opção pelo trabalho e condições de bem estar material em detrimento da filosofia (refiro-me à acadêmica e não a reflexiva). Dito isso, concordo com quase todo o artigo, incluindo-me quase cem por cento nessas condições de cansaço, que interfere diretamente na saúde física e mental (que o digam meus quatro infartos).

Entretanto, fora o espinho da filosofia entalado na garganta, sinto-me realizado e satisfeito com a vida que tenho, mesmo com tanto cansaço... o físico da rotina do dia a dia e também o existencial. Acho até que não conseguiria viver sem essas ocupações que preenchem os vazios do meu existir (tenho que trabalhar psicanaliticamente isso).

E é justamente nesse ponto que discordo do autor (Byung-chu Han), quando cita como influência o sociólogo francês Alain Ehrenberg, o qual afirma que a sociedade do cansaço ou do desempenho decorre do esforço do indivíduo de ter de ser ele mesmo, uma pressão pela autenticidade.

Pois bem, como bom Heideggeriano que sou, minha discordância está exatamente no fato de que esse esforço de autenticidade, no contexto em que foi colocado, está inserido em Ser e Tempo como fenômeno existencial da decadência (ou queda), o qual se inclui no conceito de mobilidade enquanto determinação ontológica da existência (ver ¨A Decadência da Existência: Notas Sobre a Mobilidade da Vida¨ de Thiago Aquino, professor de filosofia UFPE).

Marco Antônio Abreu Florentino

POR QUE VIVEMOS NA SOCIEDADE DO CANSAÇO?

Para o coreano Byung-chul Han, a contemporaneidade é marcada por um excesso de positividade que culmina nas mais diversas patologias psicológicas. Excesso de positividade e produtividade são causas para o cansaço da sociedade, de acordo com Byung-chul Han.

Em 2013, uma pesquisa realizada pelo Ibope demonstrou que 98% dos brasileiros se sentem cansados mental e fisicamente. Os jovens de 20 a 29 anos representam a maior fatia dos exaustos. A tendência aparece em outros lugares. De acordo com o Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos de 2015, 43% dos trabalhadores do país dormem menos do que o período recomendado pela Fundação Nacional do Sono, ONG americana que promove a conscientização pública da importância do sono e dos distúrbios decorrentes da falta dele.

O filósofo sul-coreano Byung-chul Han se debruçou sobre o tema da exaustão e produziu o ensaio “Sociedade do cansaço”, publicado no Brasil em formato de livro pela editora Vozes. No texto, Han argumenta que cada época possui epidemias próprias, como as doenças bacteriológicas e virais que marcaram o século 20. Para ele, as patologias neurais definem o século 21 – e todas elas surgem a partir de um denominador comum: o excesso de positividade. A positividade e a sociedade do desempenho Para Han, os males da alma surgem de um excesso de positividade presente em todas as esferas da sociedade contemporânea.

Nesses discursos, predominam as mensagens de ação produtiva e as ideias de que todas as metas são alcançáveis. O autor simboliza esse fenômeno a partir do slogan da campanha presidencial de Barack Obama em 2008: “Yes, we can” (“Sim, nós podemos”, em tradução livre) e do slogan da Nike, “just do it” (“simplesmente faça”). De acordo com o filósofo, o excesso de positividade presente na contemporaneidade culmina na criação de uma “sociedade do desempenho”, um cenário em que a produtividade se torna um norte para os indivíduos.

Han afirma que a sociedade do desempenho seria um contraponto à sociedade disciplinar postulada pelo filósofo francês Michel Foucault no século 20. Na sociedade disciplinar de Foucault, o indivíduo é vigiado constantemente, estando sujeito às normas locais e às punições decorrentes de qualquer tipo de desvio de conduta. “A sociedade do século 21 não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’. São empresários de si mesmos. (...) No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados” Byung-chul Han Mesmo parecendo contraditórias, Han acredita que as duas premissas se complementam de certa forma. Para ele, o sujeito do desempenho é mais rápido e produtivo do que o indivíduo obediente, mas o poder se transforma em uma espécie de dever. “O poder eleva o nível de produtividade que é intencionado através da técnica disciplinar, o imperativo do dever”, afirma.

Han usa o trabalho do sociólogo francês Alain Ehrenberg para determinar como surge a depressão no contexto da sociedade do desempenho. No livro “La fatigue d'être soi: dépression et société” (“O cansaço de ser você mesmo: depressão e sociedade”, em tradução livre), Ehrenberg argumenta que a depressão surge do cansaço proveniente do esforço do indivíduo de ter de ser ele mesmo. O cansaço de ser si mesmo, para Ehrenberg, surge da pressão por sempre ser autêntico e produtivo, bem como da ideia difundida nos mais diversos ambientes de que nada é impossível e tudo só depende da força de vontade individual. Para Han, o cansaço de si mesmo de Ehrenberg culmina numa auto exploração do indivíduo, que se entrega ao excesso de trabalho munido de um sentimento de liberdade. A falta de tédio e os multitarefas Em “Sociedade do cansaço”, Byung-chul Han também argumenta que o excesso de positividade que causa a fadiga geral se manifesta a partir de um excesso de estímulos.

O multitasking, a habilidade de realizar múltiplas tarefas ao mesmo tempo, é uma das formas do excesso de estímulos. A principal consequência disso para o autor é a perda do aprofundamento contemplativo do ser humano, com os indivíduos desenvolvendo “uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem”. A inquietação decorrente do excesso de estímulos gera uma aversão ao tédio na sociedade, criando um cenário em que as atividades são buscadas constantemente. Para Han, o ócio criativo é fundamental para a evolução intelectual da humanidade, nos mais diversos campos. “Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. (...) Essa atenção profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção. Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo. (...) Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual”.

Byung-chul Han Han cita o filósofo alemão Friedrich Nietzsche para criticar a hiperatenção e a hiperatividade. Em “Humano, demasiado humano”, livro de 1878, Nietzsche argumenta que a vida humana acaba quando elementos contemplativos são expulsos dela. Como alternativa à vida hiperativa, Han oferece a ideia de uma “vida contemplativa”, na qual os indivíduos sabem dizer “não” ao excesso de estímulos. Para o autor, essa capacidade de negação é mais ativa do que qualquer forma de hiperatividade contemporânea.

A sociedade do cansaço surge da união de todos esses fatores em algo que Han apelida de “infarto da alma”. Nesse cenário, o cansaço se manifesta coletivamente, mas de maneira solitária em cada indivíduo. O autor cita o escritor austríaco Peter Handke, que no livro “Ensaio sobre o cansaço” apresenta a ideia de uma fadiga extrema dividida entre as pessoas, cada uma com o seu próprio grau de esgotamento. Han define esse cansaço como um “cansaço da potência positiva, que incapacita de fazer qualquer coisa”. É uma fadiga surgida do excesso de desempenho e produtividade que, por sua vez, tira do indivíduo a capacidade de fazer novas coisas.

Em um dos capítulos de "Sociedade do Cansaço", Han usa o conto "Bartleby, o escrivão", de Herman Melville, para demonstrar como o excesso de positividade pode levar ao excesso de trabalho. No conto de Melville, o escrivão Bartleby passa muito tempo produzindo grandes quantidades de trabalho de qualidade, até que, um dia, passa a recusar todas as demandas que chegam até ele e demonstra uma profunda desilusão com a vida.

Escrito por Vicki Robin e Joe Dominguez, o livro “Dinheiro e Vida” argumenta que nunca se trabalhou tanto na história humana, e que a vida profissional se tornou uma nova espécie de religião. “Nossos empregos agora exercem a função que tradicionalmente pertencia à religião”, escrevem os autores. “Eles são o lugar onde buscamos respostas para questões fundamentais como ‘quem sou eu?’, ‘por que estou aqui?’ e ‘qual o sentido disso tudo?’. Os empregos também exercem a função de família, respondendo questões como ‘quem são os meus?’ e ‘onde eu me encaixo?

Estudos documentam as consequências do excesso de trabalho. Uma pesquisa de professores da Universidade de Angers, na França, publicada em junho de 2019, apontou que trabalhar mais de 10 horas diárias, por pelo menos 50 dias ao ano, é um fator de risco para a ocorrência de Acidente Vascular Cerebral nos trabalhadores.

Uma pesquisa de 2003, publicada pelo Instituto de Estudos do Emprego do Reino Unido, indicou uma relação entre longas jornadas de trabalho e o desenvolvimento de tabagismo, problemas relacionados ao sono, doenças cardiovasculares e retardamento no crescimento fetal em trabalhadoras grávidas. Além dos efeitos na saúde, a pesquisa do instituto britânico demonstrou que mais horas de trabalho estão relacionadas a uma queda de produtividade nos trabalhadores, decorrente do cansaço físico e mental.