AS LEIS – Livro XI, possivelmente o pior livro do mestre, atacado pela bile na velhice!

Tradução comentada de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”

Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei oportuno abordar pontos polêmicos ou obscuros. Quando a nota for de Azcárate, um (*) antecederá as aspas.

“Se se vende um escravo tísico, com pedra nos rins, com inflamação na bexiga, com o mal sagrado,¹ ou com qualquer outra doença, crônica ou difícil de curar, e difícil de perceber apenas pelo aspecto externo e rapidamente, ou ainda um escravo doente do espírito, não pode haver rescisão do contrato quando o comprador for médico ou mestre de ginástica, nem quando o vendedor declarara expressamente a condição da mercadoria. Mas se o vendedor é entendido e o comprador ignorante, terá o direito de cancelar a compra e devolver o escravo, no prazo máximo de 6 meses, a não ser que estejamos falando do mal sagrado, em cujo caso a rescisão poderá se estender por 1 ano.”

¹ Loucura

“quem vende em mercado público não deve precificar duas vezes a mesma mercadoria; salvo se o primeiro preço não encontrar comprador algum, não se aceita esta mudança; e quando a mudança ocorrer, o primeiro preço deverá ser suprimido para que valha o segundo. Mas não pode haver duas trocas de valor em hipótese alguma dentro do mesmo dia.”

“A lei dá a todo aquele que empreende uma obra o mesmo conselho que dá ao vendedor; que não inflacione o valor de seu produto; o artífice que se oferece a terminar algo também concorda com um preço até o final, pois sabe medir quanto vale seu trabalho.”

“ATENIENSE – ...Se testamentar fosse algo livre e individual, dando poder total às últimas vontades do moribundo, maioria transgrediria não só a lei como a própria consciência e caráter, uma vez que quando a morte se aproxima muitos de nós perdem seu juízo habitual.

CLÍNIAS – Que queres dizer exatamente, Estrangeiro?

ATENIENSE – Querido Clínias, todo homem na véspera da sua morte se encontra num humor singular, e suas palavras e opiniões enquanto neste estado inquietam e desconcertam os legisladores. (...) Em verdade, aquele que, por assim dizer, só tem mais um dia de existência pela frente não consegue mais cumprir os preceitos de Apolo Pítio – conhecer-se a si mesmo. Quem está tão perto de morrer já não pertence a si mesmo. E a quem não se pertence a si mesmo não pertence nenhum bem. Ademais, em última instância os bens de qualquer família pertencem ao Estado.”

“Aquele com filho varão já estabelecido e independente economicamente, a ele nada legará. Tampouco à filha já ao menos prometida em matrimônio; se não estiver, entrará na partilha.”

“se morre sem testamento e sem nomear tutores, corresponderá a tutela aos mais próximos dos parentes paternos e maternos, dois de cada lado da família”

“Não deixemos de observar o quanto esta lei tem de duro ao ordenar ao parente mais próximo do finado casar-se com a mais próxima que este deixou, isto é, o mais das vezes o irmão do falecido casar-se-á com a cunhada enviuvada. Em muitas ocasiões isso é atroz. Afinal, há exemplos em que cumprir a lei acarretaria o incesto. Mas, para não falarmos disso, um(a) cidadã(o) pode simplesmente se recusar a casar com outro(a) enfermo(a) ou mal-constituído(a) de corpo ou de espírito.”

“Quando o pai já foi reduzido a um vergonhoso estado de impotência pela velhice, os filhos prefeririam acusá-lo como demente ante o tribunal. (...) se só um fosse o mau, i.e., se só o filho o fosse e o pai não, este tipo de desordem e inimizade não se veria. Em nenhum governo que não o nosso (ateniense) o filho deserdado pelo pai perde também a condição de cidadão. Em Atenas é uma necessidade que isso aconteça.”

“E se um terceiro cidadão desejar adotar um filho depois de ele ter sido deserdado pelo seu primeiro pai, a lei não o poderá impedir. Um jovem sempre merece uma segunda chance. Porém, se uma criança de 10 anos ficar sem pais, aqueles do Estado encarregados de povoar as colônias (com os excedentes populacionais detectados na polis) acomodá-la-ão no estrangeiro com as devidas atenções.

Se a doença, a senilidade, um caráter insofrível, ou todas estas coisas juntas, privassem algum cidadão do uso dos sentidos e da razão, de sorte que esta condição só fosse conhecida dos seus convivas mais próximos; e, sendo dono de bens, esse alguém estivesse a arruinar a família e arruinar-se junto no processo, e seus filhos não soubessem mais como reagir, não atrevendo-se, por respeito, a denunciá-lo ao tribunal por demência, eis o que a nova lei disporia: Os filhos acudirão aos mais antigos guardiães das leis e os inteirarão da triste situação do progenitor. Estes, depois de provarem a exatidão das palavras dos filhos, darão um parecer. No caso do pai realmente ter-se tornado um demente, os próprios guardiães serão testemunhas no julgamento. Se o pai é interditado, nenhuma ação sua sobre seus bens será considerada válida; deste ponto em diante, será considerado como se vivera numa segunda infância.

Se marido e mulher não vivessem em harmonia à causa da incompatibilidade de caracteres, 10 guardiães das leis e também 10 mulheres escolhidas entre as encarregadas das inspeções dos matrimônios procurariam resolver essas diferenças benevolamente. Se houvesse êxito, obviamente essas mediadoras seriam muito consideradas; mas quando não houvesse remédio, o melhor seria juntar pessoas de temperamento mais compatível, dissolvendo os casamentos ruins; como quase todo fracasso matrimonial advém de humores recalcitrantes de um dos dois cônjuges (quando não de ambos), as reconciliadoras tomariam providências para que estes caracteres mais intoleráveis se unissem a pessoas de hábitos mais pacíficos e suaves. Na hipótese da união em discórdia não ter gerado prole, ou gerado escassa prole, este histórico será levado em conta na formação de novas uniões. Se o casal já tem número bastante de filhos, o único propósito das novas uniões será o de ajudar os cidadãos a chegar à velhice vivendo juntos e respeitando-se mutuamente.

Se um marido chega a perder a mulher e ela também deixa para trás uma prole numerosa, a lei aconselha uma educação sem a inserção de uma madrasta, embora não puna quem não observar esta recomendação. Caso o viúvo não tenha filhos, a lei o obriga a casar-se novamente, até que tenha os filhos que a casa e a polis exigem de si para seu sustento continuado. Caso morra primeiro o marido, deixando a mulher e muitos filhos, a mãe educará os rebentos, permanecendo obrigatoriamente viúva. Crê-se, popularmente, que a viúva por demais precoce não poderia atravessar uma longa vida sem marido sem comprometer a própria saúde; neste caso, pois, depois que for realizada a primeira educação das crianças, os parentes da viúva consultarão as mulheres encarregadas publicamente da questão dos matrimônios. A viúva deverá cumprir o que for decidido de comum acordo entre estas autoridades e sua família. Caso a viúva não tenha tido filho algum do marido defunto, deverá voltar a se casar a fim de cumprir sua obrigação. O número de filhos exigido pela lei é: um varão e uma fêmea.

Quando for fato provado e estabelecido que o filho é realmente de seu pai e de sua mãe, [!] na hipótese do divórcio, sendo necessário estabelecer a quem caberá a guarda, seguir-se-á este procedimento: Quando se tratar de comércio carnal entre uma escrava e um escravo, ou entre uma escrava e um liberto ou entre uma escrava e um homem livre (cidadão), o filho pertencerá sempre ao dono da escrava. Se o filho foi gerado da relação de uma mulher livre com um escravo, o filho pertencerá ao dono deste escravo. Se o dono da escrava tem um filho com a própria, ou a dona com o próprio escravo, tendo-se tornado tal fato público, as mulheres que administram os casamentos na polis relegarão o filho nascido de mulher livre a outro país; o pai escravo também será exilado; bem como relegarão o filho nascido de homem livre a outro país, junto de sua mãe escrava.”

“Édipo, quando percebeu que era objeto de desprezo por parte de seus filhos, encheu-os de imprecações, que os deuses, como todo mundo o sabe, ouviram e atenderam. Amintor e Teseu, num momento de cólera, maldisseram a Fênix e Hipólito, bem como muitos o fizeram com seus próprios filhos. A história demonstra com evidência suficiente que os deuses ouvem as súplicas que os pais lhes dirigem contra seus filhos. As imprecações de um qualquer são invariavelmente menos funestas que as de um pai ou uma mãe. As súplicas dos pais aos deuses funcionam tanto para o bem quanto para o mal. Quando os pais são desprezados em seu amor pelos filhos e rogam aos deuses, a punição é certa. Mas quando os pais sentem-se gratos e fazem preces ardentes pela prosperidade dos seus, também são prontamente atendidos e seu desejo é realizado. Se assim não fosse os deuses não seriam justos e eqüitativos, o que seria contraditório com a natureza de um deus.”

“Há dois tipos de mal. A distinção não é sempre clara. Um consiste em corromper o corpo mediante a virtude natural de outros corpos. O outro no emprego de prestígios, encantamentos e superstições a fim de prejudicar terceiros. Mas tanto encantador quanto supostas vítimas de encantamento se enganam por igual, quando acreditam que esses métodos realmente surtem algum efeito. É difícil saber com exatidão o que pode haver de verdadeiro em tudo isto; e mesmo que se soubesse seria impossível convencer os demais. É inútil usar da razão contra certos espíritos, fortemente inclinados ao supersticioso, e tentar convencê-los de que não se deve perder tempo com miniaturas de cera que se pode deixar à porta de alguém a quem se queira mal, ou então em encruzilhadas, ou sobre os túmulos dos antepassados; de nada vale dizer-lhes que deveriam desprezar todas essas coisas, ou qualquer coisa que não aja por princípios seguros; porque este tipo de mal é absolutamente incerto.”

PLATÃO ESCLERÓTICO: “que estes supersticiosos não amedrontem os outros homens em vão, qie não os tratem como se não passassem de criancinhas! É um inconveniente que o legislador e os juízes tenham de perder seu tempo aplicando remédios contra essa sorte de crendices. Aquele que usa certas drogas a fim de prejudicar o próximo ignora o efeito que esta substância possa produzir sobre os corpos, caso não seja médico. Nada sabe de adivinhações se não é oráculo nem sabe ler os augúrios. Esta é a recomendação que transmitimos, e ademais disso resta incólume e transparente a lei: Todo aquele que use de medicamentos incomuns, não a fim de matar um cidadão ou um parente, mas para matar seus demônios ou fantasmas, ou, enfim, tentando salvá-lo de qualquer dano mais grave ou curá-lo, e pratica, com conhecimento e convicção, a imperícia, i.e., o médico que erra, deverá pagar com a vida. [!] Se for um leigo ou aventureiro qualquer, os juízes fixarão a multa ou outra pena que mereça no caso. Aquele que se valer de talismãs, feitiços e encantamentos, e qualquer coisa do gênero, com intenção dolosa, sendo adivinho ou versado nos augúrios, que morra! Se nada dessas artes conhece e mesmo assim está convencido da verdade destes recursos, que o tribunal decida o que devem sofrer seus bens e sua pessoa.”

INDÚSTRIA DA MULTA: “Que os loucos não sejam vistos em público, e que a parentela preserve-os do convívio humano o melhor que puderem para que não paguem multas. Cem dracmas pagarão os cidadãos da primeira casta, 80% de uma mina os da segunda, 60% os da terceira, 40% os da quarta. Doidos há de muitos tipos; referimo-nos tão-somente aos enfermos. Outros se comportam como furiosos unicamente por conta de uma predisposição inata potencializada pelo tipo de educação que receberam. Estes, à menor ofensa ao acaso, prorrompem em exclamações e vituperações, exalam desimpedidamente sua cólera em torrentes abundantes. Dois coléricos se xingariam mutuamente em praça pública por longo tempo se não houvesse quem os pudesse parar. Que não se consinta com semelhantes coisas num Estado de valor como o nosso!”

“um homem se vê logo convertido em mulher, e o que em sua origem não era mais que uma disputa de palavras, trivial, degenera rapidamente em ódio e inimizade profundos. O que fala se banha em fel. E depois de muito se escutar a si próprio, como recompensa por ser o seu maior ouvinte, o maior escutador do próprio ressentimento, vive devorado pelo desgosto e pelo mau humor crônico. Não é estranho ver esse tipo de homem dirigir piadas contra o adversário em público, provocando a derrisão. Todos os que assim agem carecem por completo daquela tão necessária gravidade no cotidiano do homem de espírito. Uma alma verdadeiramente grande em nada se parece com isso. Que se proíba essa conduta nos lugares sagrados e nas festas e nas celebrações e nos jogos, enfim, na praça, no foro, e nas assembléias! Os magistrados terão autonomia plena para castigar os infratores.”

“Dificilmente se sustenta por muito tempo uma polêmica sem se tentar ridicularizar o oponente com algum vitupério ou epíteto mortificante – vê que é esta a essência do caráter colérico.”

“Limitar-nos-emos, pois, a censurar somente a burla animosa, sendo permissivos com a burla alegre e não-colérica? É um ponto polêmico, e merece consideração. Que se proíba o poeta, o comediante, o autor de jambos e demais versos de satirizar, seja ostensivamente, seja recorrendo a sutilezas. E pouco importa que seja ou não a cólera o motor da diatribe. Os magistrados enxotarão dos espetáculos na mesma hora os infratores, caso não queiram pagar 3 minas.” “E quem é apto para julgar dessas coisas? O magistrado que cuida da educação juvenil. Pode-se distribuir livremente as peças que este magistrado aprovar, mas que entre em total olvido as que ele rejeitar.”

“Não deve haver mendigos em nosso Estado. Se a alguém ocorrer a idéia de viver da mendicância, os agorânomos¹ deverão expulsá-lo da praça, os astínomos² da cidade, e os agrônomos³ do território da polis como um todo. O país tem de se ver livre desta espécie de animais!”

¹ Aportuguezação de agoranomos, espécies de “bedéis do mercado”!

² O equivalente atual do policial.

³ Obviamente o sentido original desta palavra se perdeu.

“Aquele que se negar a comparecer perante os tribunais poderá ser citado por aquele que necessitar de seu testemunho, sendo assim obrigado a comparecer em juízo. Se se cientifica do fato e consente, que compareça de uma vez; mas se se obstina em dizer que em nada se relaciona com a questão e recusa a ida ao foro, o Estado não dará liberdade a este homem antes de que tenha prestado juramento a Zeus, Apolo e Têmis, de que realmente a questão não lhe diz respeito algum. Todo aquele que, chamado para testemunhar, não comparecer, será considerado culpado daquilo, justamente, de que é acusado ou de que se acusa um terceiro, e que ele tem o poder de acobertar. Se um dos juízes for chamado para testemunhar, estará fora do litígio enquanto autoridade.”

“Os escravos de ambos os sexos e os filhos de família poderão depor como testemunhas e apoiar o direito de outrem somente em causas de homicídio, contanto que dêem caução de que comparecerão até o momento da sentença.”

“Testemunhas sem crédito serão contestadas pelas partes por escrito, de forma que os magistrados julgarão afinal se é pessoa de má-fé ou boa-fé para desempenhar o ofício. Aquele condenado duas vezes por falso testemunho não mais estará obrigado a depor uma terceira vez em sua vida; mas se acaso pisar no foro e mentir outra vez, estará permanentemente banido da condição de testemunha. O perjuro que reincide pela terceira vez, tornando-se perjuro pela 4ª vez, burlando a lei e a própria proibição de ser testemunha novamente, este poderá ser denunciado por qualquer cidadão; se se comprova sua culpa, dá-se-lhe a sentença de morte.”

“sendo a justiça uma coisa tão boa, como a profissão de advogado pôde deixar de ser uma profissão honesta? Apesar disso, não sei que má prática, disfarçada sob o estimado nome de arte, acabou por desacreditar completamente esta profissão. Diz-se que há no foro uma espécie de rotina, mediante a qual, advogando já em favor de uns, já em favor de outros, ganha-se facilmente o litígio, tenha-se ou não razão. Tudo é questão de se pagar bem. Pois bem: será o melhor para o nosso Estado se não houver nenhum homem hábil nessa tal arte. Havendo-os, que pelo menos submetam-se às súplicas do legislador e não usem jamais de seu saber para burlar a lei e a justiça. Se não puderem fazê-lo, que vão a outras partes exercer seus talentos! O que a lei, a nossa lei, tem a dizer sobre os advogados que não atuam conforme os preceitos da justiça? Aquele que age sistematicamente de forma na debilitar na alma dos juízes o sentimento da eqüidade, colocando o indivíduo em primeiro lugar e acima do Estado, este será livremente acusável pelo cidadão comum de ser um mau orador.”