o estupro


"O estupro é um processo consciente de intimidação por meio do qual todos os homens mantêm todas as mulheres em estado de medo" (Susan Brownmiller - Against Our Will  - 1975).

Li o artigo "A violência do estupro",  de Amara Moira (Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima, 11/08/2019) e, introspectivo, vi que, não raras vezes, transferimos o nosso machismo para nossos escritos, quando narramos a intimidade homem/mulher.  Será verdade que elas gostam de apanhar?...
Sem querer (?!), o homem se exibe, universalmente, como o caçador, o herói, o domador das fêmeas, enquanto arrasta pelos cabelos até a caverna  (aplaudido pelo público) sua presa dominada. E o objeto da caçada, feliz ou infeliz, culpada ou inculpada, honrada ou desonrada, chora, intimamente, suas eventuais mutilações, quiçá humilhações ou decepções: "Por que você fez isso comigo?"...  "Como fui tola !"...     "Poderei estar grávida, mas irá ele assumir a responsabilidade de pai"?!... 
Queixas e dúvidas de quem conhece o comportamento pusilânime do machista.
Por outro lado, que preocupação ou sentimento tem o homem depois de uma relação com a sua parceira ou com uma criaturinha que caíu em seu laço?
O escritor, não raras vezes, se despreocupa com o dia seguinte dessa parceira ou daquela criaturinha (quem sabe, iludidas!) e, não é raro, tenta mantê-las culpadas.
Para uma breve análise ao longo dos séculos, julgo oportuno lembrar alguns trechos extraídos da literatura universal:
Citarei Camões, Jorge Amado,  Gabriel Garcia Marquez, iniciando porém com uma interessante passagem bíblica,  em que o dono de extensas plantações de trigo, Boaz, tendo demonstrado algum interesse pela viúva Rute, que recolhia humildemente os grãos que sobravam no caminho, termina sendo, na história, por ela seduzido. Conta-se que Rute usou de uma tática feminina, orientada inteligentemente por sua velha sogra, Noemi.   Ora, se já havia interesse por parte de Boaz, por que escrever que as mulheres usaram de algum esquema, cilada ou estratégia?...
- Luis Vaz de Camões, em "Os Lusíadas", cita que Vênus reuniu as mais belas ninfas numa ilha, pedindo ao Cupido que as flechasse, a fim de que se enamorassem dos portugueses, como recompensa por sua chegada às Índias.  Independentemente de flechas, os portugueses ao se depararem com as ninfas seminuas no Oceano Índico, saíram a caçá-las com seus (ou como se fossem) cães de caça.  O narrador, no entanto, dá relevo à astúcia feminil das ninfas, sob mantos de castidade e honestidade, deixando bem claro o fingimento delas e salvando a  honradez, hombridade, inocência e reputação dos fogosos navegadores.     
- Jorge Amado, em "Capitães de Areia", narra o estupro de uma "negrinha" (preconceito implícito) pelo seu personagem, Pedro Bala, atraído que foi pelas nádegas rebolantes de sua vítima. Depois de dominá-la, ele tenta seu consentimento com a expressão: "Vamos fazer um filho lindo!".  Terminado o ato, o estuprador insiste para acompanhar a jovem por ele desonrada até o final de um extenso areial, e de mãos dadas, à noite, com intenção de protegê-la: "Vou te levar que é para um malandro não te pegar". Extremamente magoada, ela chora desesperada enquanto caminham.  Ao ver-se livre, corre até longe, rogando pragas contra o seu agressor.  Mas o narrador revela-se condescendente para com o personagem  Pedro Bala (machismo igualmente implícito). Imiscui-se no pensamento da moça deflorada, indignada, desprotegida e amedrontada, que "Começa a sentir, de repente, a chegada impetuosa do desejo".  Carregando, em seguida, alguns atenuantes em favor do machista agressor, o narrador, ao mencionar que a "negrinha", em determinados momentos, sentia prazer, ao relembrar o ocorrido, lança a dúvida para o leitor: "Houve estupro?".
- Gabriel Garcia Marquez, em "Memória de minhas putas tristes", narra que "Eu, no ano de meus noventa anos, quis me dar de presente fazer sexo com uma adolescente virgem"...  Contacta uma conhecida dona de bordel, que assegura conseguir sua encomenda no prazo máximo de dois dias...
Perante os costumes, a desaprovação da vítima deve ser sincera, positiva e manifestar-se por comprovada resistência.  Parece não valer como estupro uma simples oposição, inércia ou uma esquivança simulada. O escritor precisa deixar claro, em seus contos, artigos, análises ou crônicas, se houve de fato o consentimento da mulher numa relação a dois. Reprovam-se, portanto, como vimos nos quatro exemplos acima, explicações tangenciais que visam tão somente salvaguardar suas discriminações e o seu próprio machismo, em detrimento da decência e dignidade das fêmeas.
Será mesmo verdade que elas gostam de apanhar?!...
Estupro literário, não!...  Vamos evitar!?...


 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 15/09/2019
Reeditado em 18/09/2019
Código do texto: T6745304
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