Suicídio Digital

Andar pelas ruas, pegar o ônibus, fazer compras, ir ao cinema. Qualquer atividade cotidiana inclui o uso do celular, em alguns casos quase como uma extensão do próprio corpo. Nenhuma dessas atividades, aparentemente simples, está imune à existência dele. Imersas em um mundo quase utópico , caminham as pessoas, comprometidas com uma realidade que aparenta não dialogar de forma explícita com as relações de convívio humanas.

Mas o que caracterizaria, então, as tais relações citadas? Muitas pessoas discorrem sobre a solidão que sentem, mesmo estando cercadas de pessoas em suas redes, compartilhando cada passo realizado durante o dia. Compartilhar virou sinônimo de estar presente, de encarar um personagem virtual que deveria ser um simulacro daquilo que se é na realidade. Fotos selecionadas no Instagram, feitas com o auxílio dos mais potentes filtros; discursos de ódio, construídos a partir de uma ignorância meticulosamente encorajada pelos donos do poder instituído, no Facebook; frases racistas e homofóbicas destiladas no Twitter; fake news distribuídas como verdades absolutas pelo whatszapp... Perfis falsos criados especialmente para atrair pretendentes no Tinder...

Tudo isso, e a percepção sobre tais coisas, tem encorajado um número cada vez maior de pessoas a cometerem o chamado suicídio digital, ou seja, um procedimento que possibilita desaparecer do mundo virtual. É possível apagar as contas das redes sociais e também solicitar aos mecanismos de busca e pesquisa, como o Google por exemplo, que os dados que possibilitam rastrear as trajetórias no universo online do interessado sejam efetivamente deletados. Tentar retomar a realidade e efetivamente viver, sem filtros. Decisão complicada quando nosso dia é tomado pela participação efetiva em redes sociais, compartilhando sonhos, ideias e perfis falsos, tentando acreditar que somos aquilo que gostamos de teclar.

Poucas pessoas relacionam-se com as redes sociais sem serem tragadas para um universo digital paralelo. O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Baumann, em seu livro A modernidade líquida , trata da ideia do sujeito líquido, ou seja, aquele em que inúmeras identidades se manifestam em momentos diferentes. Esse conceito se aplica perfeitamente à construção de uma identidade fragmentada que podemos observar nas pessoas que são usuárias de várias redes sociais. É relativamente simples viver uma fantasia de poder e empoderamento através da navegação online.

Decidir então, por afastar-se desse universo torna-se muito difícil, principalmente para a geração dos denominados nativos digitais , que possuem uma relação muito mais imbricada ao uso das ferramentas tecnológicas. Libertar-se, portanto, de uma vida regrada por uma dependência à participação em um mundo virtual significa amadurecer a ideia de conviver de forma mais simples, mais humana.

Obviamente não significa distanciar-se da tecnologia ou algo neste sentido, mas deixar de expor publicamente suas escolhas e sua vida como algo natural. Claro que se a vida da pessoa se baseia 100% em articulações presentes no mundo digital, é preciso verificar as consequências que um sumiço das redes pode proporcionar.

Ter milhares de amigos nas redes sociais e ninguém para conversar pessoalmente, em um barzinho, ou mesmo em casa. Coisa de gente velha? Coisa obsoleta já que é possível trocar impressões via redes digitais? Pode ser...Ou não...

Retomando a ideia de identidade fragmentada, somos seres múltiplos, mas a identidade de cada um é particular e única. Criar no meio digital uma ilusão a respeito do que somos, em algum momento, nos colocará em situações difíceis de resolver. Além disso, ao associar-se a uma rede qualquer, nossa privacidade deixa de existir, e podemos ser expostos a qualquer momento a toda sorte de situações.

Nesse caso, cometer o chamado suicídio digital pode ser uma boa saída para tentar ter uma vida, real, mais saudável e verdadeiramente próxima de nossa família e amigos.