DIVERSIDADE NA ESCOLA DEMOCRÁTICA & O DILEMA DA MOTIVAÇÃO: Violência intramuros e uma ligeira proposta de integração e autonomização do universo jovem
Brasília, junho/2009
Have Cool, Will Travel¹
Mamas pack their lunches, kiddies pack their guns
Wishing it will go away, but nothing’s getting done
A shot heard ‘round the world, when a mother’s baby dies
We the people, point our fingers, blame and wonder why
Face it and fight or turn high tail and run
‘Til it comes back again just like the rising sun
Say they do all they can, it’s just another lie
The answer’s plain to see, nobody wants to try
[REFRÃO]
There’s no recess and no rules in the school of life
If you listen very closely you’ll see what it’s like
Have cool, will travel
Tell myself it ain’t true, they just cannot see
Grown up or sewn up, the medicine’s worse than the disease
I have cool, will travel
Here we go
¹ Esta é uma canção da banda Megadeth sobre bullying. Segue sua tradução para o Português: “Não Esquenta, Vá em Frente (ou Relaxa, Vai Passar): Mamães preparam os almoços, as crianças suas armas / Desejando que isso tenha um fim, mas nada nunca muda / Um disparo que se ouve por aí, enquanto morre o filho querido / Todos nós, com o dedo em riste, acusamos e questionamos a razão / Encare e lute ou ponha o rabo entre as pernas e corra / Até acontecer tudo de novo, conforme os dias vêm e vão / Diga que as autoridades fazem tudo que podem, é só outra mentira / A resposta é óbvia, ninguém quer nem tentar / (Refrão) Não há recreio nem há regras na escola da vida / Se visse de perto você saberia como é / Não esquenta, vá em frente / Eles dizem que não é assim como eu falo, eles não têm idéia / Crescido ou remendado, o remédio é pior que a doença / Eu não esquento, sigo em frente / Aqui vamos nós”.
TEMA 1: Gênero, sexualidade e diversidade na escola
Para descrever a diversidade na escola em regimes democráticos e tratar das questões de gênero e raça, dentre outras, é essencial falar da violência dentro dos muros e das cercas das instituições, afinal esta é uma das conseqüências indesejáveis da massificação do ensino e nela se refletem os desnivelamentos e divergências inter-pessoais próprios a qualquer sociedade. O desafio que nos é posto é o de pensar o outro como a realização de uma cultura plural e aberta a novas idéias e configurações, e não como estrito gerador de conflito e empecilhos, mais um concorrente no mundo do mercado de trabalho. Isso é sobretudo verdade em um país que ainda tem muito o que avançar em termos de políticas afirmativas para as minorias e demais categorias desfavorecidas ao longo de seu extenso território.
1.1 Definição do problema, a mulher na escola e a situação brasileira
A violência escolar é um tema que começou a ser abordado apenas recentemente. Oficialmente, desde meados dos anos 70 violência na escola não pode ser considerada a punição física do professor sobre o aluno, porque esta prática foi virtualmente erradicada após milênios em voga (remontando aos gregos antigos e hebreus). Casos neste sentido são excepcionais e o estudo da violência sistemática no ambiente da escola passou a se concentrar nas relações aluno-aluno e na vertente psicológica do binômio adulto-criança ou adulto-adolescente.¹ Há ainda o vandalismo, quer seja, a depredação da propriedade pública ou particular (ABRAMOVAY, 2002, p. 42).
¹ Aqui focamos o ensino secundário, ou seja, a idade da adolescência.
A respeito de tipos de violência entre alunos, o que mais nos interessa, há aquela pontual e a que se apresenta de maneira recorrente, repetitiva e padronizada. Um estupro seria um exemplo da primeira, porque em tese será realizado em uma ocasião, sem continuidade do ato no tempo e sem registros de agressões antecedentes. Caso se trate de uma aluna sistematicamente rotulada de algo vexatório ou reprovável, que sofra injúrias e mesmo investidas físicas mais leves que um estupro, porém não-consensuais, tem-se o bullying e a detecção de um problema estrutural de sexismo.¹ “Bullying is defined by Nancy Day (1996: 44-45) as physical or psychological abuse against someone who is not capable of defending him/herself.” (“O bullying é definido por Nancy Day como abuso físico ou psicológico contra alguém que não é capaz de defender a si mesmo.”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 46, grifo nosso). Mais à frente, acerca do bullying em associação com o gênero: “She [a autora Nancy Day] says that the majority of the bullies [autores do bullying] are boys, but that girls can be bullies as well. The girls that are bullies sometimes use indirect methods like gossip, manipulation of friendships, lies and excluding others from the group.” (“Ela diz que maioria dos bullies são meninos, mas que meninas também podem ser bullies. As garotas que são bullies às vezes usam métodos indiretos como fofoca, manipulação de amizades, mentiras e exclusão de outras(os) em relação ao grupo.”) (Ibid.).
¹ De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa online (http://www.priberam.pt/dlpo), sexismo é: “s. m. Termo empregado pelos movimentos de emancipação feministas para designar a atitude dominadora dos homens para com as mulheres.”
Outros autores fazem separações relativas a dano físico ou psicológico ou consideram como violência apenas o crime. Segundo essa linha de raciocínio, para ser caracterizado como vítima de violência (necessariamente física), basta que o estudante tenha sofrido um atentado contra três artigos dos quais é o soberano absoluto: sua vida, sua saúde ou integridade, sua liberdade. O que é difícil de precisar, senão impossível, são os limites da transgressão da liberdade. Charlot (1997 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 44) distingue a violência propriamente dita da incivilidade (a humilhação ou falta de respeito). Haveria ainda a violência simbólica ou institucional contra o indivíduo. O aluno pode se sentir alienado pelos anos em que passou na escola; o próprio professor pode reclamar das condições parcas de convivência estabelecidas pelo seu local de trabalho (salas ociosas e desequipadas, ou justamente o inverso, a superlotação; a indiferença estudantil, etc.). Segundo Charlot, a incivilidade é típica da escola, uma concentradora de relacionamentos. Incidentalmente membros deste corpo podem recair na violência formal, como furtos, vandalismo e espancamentos, mas estes são problemas urbanos mais generalizados.
Debarbieux (1998) (Ibid.) chama essa divisão de obsoleta, pois não se deve considerar violências tais, só porque previstas no código penal, como pertencentes à realidade das ruas e expulsá-las conceitualmente das escolas, onde incidem ao mesmo tempo estimuladas pelas incivilidades e como estimulantes das mesmas. Um exemplo capital é o tráfico de drogas, redes internacionais sobre as quais a escola não tem controle, mas nas quais está enredada, constituindo, aliás, um centro de propagação de narcóticos, ponto de encontro entre traficantes e usuários (lembrando que pela legislação só o primeiro é o criminoso). Guimarães (1995 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 65) assinala a necessidade de alguns diretores de escola em periferias e favelas do Rio de Janeiro coadunarem com o modus operandi dos chefes do tráfico visando à manutenção da estabilidade gerencial intramuros. Significa que a escola perdeu seu status de lugar seguro e de proteção ao cidadão em formação, que é uma de suas razões de ser (ABRAMOVAY, 2002, p. 45).
A dificuldade de coibir essas violências mais tácitas e em particular o bullying reside em muitas de suas ações não poderem ser enquadradas em processos judiciais, seja pela abstração excessiva do prejuízo sofrido ou pela sensação de banalização dessas ocorrências. Essa brecha é reflexo da pobreza conceitual do termo violência: Sposito (1998) e Arendt (1961) (apud ABRAMOVAY, 2002, p. 47) apelam para definições mais amplas de poder exercido eficazmente através da própria linguagem. Isso é alarmante porque ao lado do bullying, ou algumas vezes em interseção com ele, há a formação de gangues e de concepções xenófobas.
Outra deficiência metodológica se relaciona ao fato de que, até o presente, na Psicologia do Desenvolvimento e nas Ciências Sociais, é oferecida pouca discussão quanto às relações dos professores entre si, entre professores e diretores e entre professores e coordenadores como um todo (Ibid., p. 58).
Dá-se, finalmente, em fins da década de 90, um consenso: a tipificação do fenômeno da violência escolar como eminentemente ocidental, embora o termo passe a ser insuficiente quando se considera o Japão, nação modernizada nos moldes americanos com um sistema educacional bastante correlato, a enfrentar as mesmas dificuldades do sistema-irmão (FELDMAN, 1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 62). Dir-se-ia, pois, que se refere a processos ubíquos como globalização, expansão dos meios de comunicação de massa, consumismo, crise da família e dos valores burgueses, individualismo, desemprego, intensificação de problemas psicológicos do cidadão urbano, entre outros.
Isso não é dizer que a violência se configura de maneira homogênea no território mundial. Bergman (1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 59) ressalta a peculiaridade alemã da ansiedade e insegurança jovens promovidas pela reunificação do país após a Queda do Muro de Berlim. Sposito (1998 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 62) destaca as condições sócio-históricas brasileiras que fazem da escola o local por excelência da manifestação da violência (entre elas a perdurável exclusão social). O autor não negligencia, no entanto, a grandeza do país e a particularidade de cada área ou instituição escolar. Ainda não há uma soma adequada de estudos tão específicos. Sposito (2001 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 63) nota o caráter esparso e descontínuo dessa iniciativa metodológica (partir do particular para depois permitir comparações em grande escala), recrudescido na década de 80 pela resistência das escolas em disponibilizar dados.
Ao contrário do exemplo citado acima dos chefes do tráfico, que demonstra inserção da violência na escola via fator exógeno, uma pesquisa que envolveu o Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (LPT-UnB) detectou preocupação com agressões de alunos a professores, contra quase nenhum caso oposto. Porém, o tipo de violência mais difundido nas escolas primárias e secundárias do Brasil seria o vandalismo e a depredação, sobretudo nas públicas (ABRAMOVAY, 2002, p. 65). Uma das grandes motivações apontadas é a perspectiva jovem de que a escola adota uma atmosfera que constrange as individualidades e sufoca o exercício da criatividade. A linguagem burocrática e oficial da instituição seria a antítese da realidade desses adolescentes (SANTOS, 1999, p. 157 apud ABRAMOVAY, 2002, p. 68).
É sublinhado o fato de que nas zonas mais “acostumadas” à violência muitas das escolas negam a própria incidência desse mal dentro de seus portões. Ou, melhor dizendo, naturalizam as brigas e incidentes, enxergando-os como imutáveis a longo prazo, decorrência do comportamento normal do jovem. É notável, nesse sentido, o que a escandalização midiática pode promover em termos de debates, pesquisas e recursos para a área: em 1997, em Brasília, quando cinco adolescentes queimaram um índio Pataxó na parada de ônibus, a opinião pública foi tão incisiva que em um ano já se via um estudo conciso sobre violência nesta faixa etária na capital, levado adiante pela UNESCO, intitulado “Juventude, Violência e Cidadania: os jovens de Brasília” (ABRAMOVAY, 2002, p. 70). Isso exemplifica o enorme poder da imprensa e da iniciativa acadêmico-pedagógica, desde que haja interessados. O caso ganhou repercussão por ter ocorrido no Plano Piloto, região nobre do Distrito Federal em que essa modalidade de crime é pouco comum.
No combate à violência escolar, pesquisadores de Brasil e França possuem uma interessante convergência: o papel do professor como formador de opinião (Ibid., p. 71). Daí sua flexibilidade e respaldo para ensinar ética em sala de aula (*). O tema 2 sugerirá uma possibilidade lúdica para o atingimento de tal meta.
(*) [Nota acrescentada em 06-08-2019] O velho dilema platônico (e, doravante, ocidental): a virtude é ensinável?”.
1.2 Potenciais causas da violência na escola a partir de um recorte ficcional
O caso de violência escolar mais notório é o que ficou conhecido como Massacre de Columbine High School, escola secundária do Colorado, Estados Unidos, cujo final do período letivo de 1998-1999 foi maculado por um atentado de dois jovens de posse de várias armas de fogo e bombas caseiras, com saldo de mais de uma dezena de mortos. Trata-se do extremo a que pode chegar a revolta estudantil: a supressão do direito à vida dos colegas. Gus Van Sant se inspirou na tragédia para dirigir um longa-metragem (Elefante) em que outra dupla de adolescentes promove uma carnificina em escola norte-americana fictícia de classe média alta.
A ação é lenta e espaçada e transcorre em longos corredores em um dia de aula corriqueiro, na véspera de um feriado. A câmera acompanha várias personagens e utiliza planos-seqüência bastante compridos. A narrativa é contada de forma circular, o que faz com que o expectador vá e volte na manhã e na tarde dos acontecimentos. Por vezes, um personagem que interage com outro é mostrado tanto na própria perspectiva quanto na visão do segundo: as cenas são refilmadas de um novo ângulo que modifica as percepções. O ritmo despreocupado da(s) estória(s) é abruptamente abandonado quando Eric e Alex ingressam na escola e iniciam os disparos.
O interessante da obra audiovisual é refletir sobre as possíveis motivações dessa fatalidade inesperada, o que nos faz deparar com um nó cego de causações justapostas. A primeira delas é o acesso às armas. Os jovens as conseguiram na Internet. Porém, conforme se torna explícito em outro diálogo, nos Estados Unidos muitas crianças moram em residências com armas. A regulamentação da posse de armamento é frouxa no país, pois foi com base em espingardas particulares que as antigas Colônias obtiveram sua independência. Outra hipótese é a depressão juvenil típica do mundo moderno: falta de amizades, família desestruturada, sofrimento de bullying e forte desejo de vingança contra seus agressores e desprezo das autoridades da escola. Com exceção dos relacionamentos parentais, ambos parecem padecer desses sintomas. O filme retrata Michelle, outra jovem excluída pelas colegas, principalmente na atividade de educação física. O estado deprimido não pode ser considerado justificativa suficiente, pois faz parte do desenvolvimento do indivíduo. Eric, o personagem mais evidenciada na tela entre os dois assassinos, possui habilidade artística: desenha e toca piano bem. Interessando-se ou não pela música clássica – sua postura diante de Beethoven é ambígua –, executa a Nona Sinfonia com esmero. No seu quarto estão empilhados vários videogames. Alex, quando entra no aposento, usa o computador portátil do comparsa para rodar um simulador de tiro em que agride os transeuntes pelas costas. Os dois assistem a um documentário sobre o nazismo e logo depois, contraditoriamente, experimentam um beijo gay (seu primeiro beijo) durante o banho. A discussão em torno dessas meras cenas tem potencial ilimitado: videogames são estímulos para ou atenuadores da violência? Provavelmente os dois. A sensibilidade de Eric para as artes pode se voltar contra ele (e contra os outros) quando a mesma não é reconhecida por seus pares. Mas Michelle consiste em um exemplo de aluna de baixa auto-estima e vítima de bullying que sabe canalizar seu intelecto em outras atividades. A narrativa brinca com a controvérsia de que bons alunos podem ser perpetradores de violência banal porém assídua aos companheiros de turma e que no dia de amanhã o caçador pode se tornar a caça. Dadas essas informações, o caráter excepcional de Eric e Alex ainda não foi desvendado, nem poderá jamais ser. Hannah Arendt bem se refere à dificuldade dos teóricos de definirem o tempo presente: “this rupture occurred when a certain historic event confused the present, creating a void between the past and the future” (“essa ruptura ocorreu quando um certo evento histórico bagunçou o presente, criando um vazio entre o passado e o futuro”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 15).
TEMA 2: Motivação e autonomia no contexto escolar
“Violence in the school environment impose new challenges to the shaping of knowledge, especially in respect to teaching and the incorporation of ‘human ethics’ and ‘human knowledge’ (Morin, 2000)” (“A violência nos arredores da escola impõe novos desafios à modelagem do conhecimento, especialmente com respeito ao ensinar e à incorporação da ‘éticaa humana’ e de ‘conhecimento humano’”) (ABRAMOVAY, 2002, p. 19). Tendo em vista o papel central do educador na transmissão de valores éticos e de cidadania pelas futuras gerações, é bem a propósito que contemplamos a sugestão da aplicação do RPG (Role Playing Game) à disciplina de História ou à grade multi-disciplinar correlata da instituição.¹
¹ Um dos horários para a implementação da atividade pode ser o fim-de-semana ou o contra-turno, caso haja dificuldades em encaixar enredos (tramas, histórias, uma lição ou sessão do jogo, cf. adiante no tema 2) no espaço de uma aula e de um cronograma institucional apertado. Já vimos como eventos extra-curriculares do porte foram adotados em vários subúrbios violentos com sucesso, com a abertura para utilização das quadras de esporte como forma de recreação e ocupação das crianças que poderiam estar se envolvendo em atividades ilícitas por não terem outra opção (ABRAMOVAY, 2002, p. 26). Restaria, o que é mais complexo, um acordo entre professor e direção e uma definição de horários em que o mentor da disciplina e outros educadores pudessem estar disponíveis em dias de folga. Recomenda-se que esta atividade seja facultativa para os alunos, cabendo-lhes decidir não participar ou participar tão-somente como expectadores. Além disso, obviamente o RPG é apenas uma estratégia complementar a uma série de políticas afirmativas que dependem de outras instâncias. E não se trata apenas do combate à violência nos arredores dos muros da escola: como atividade cívica, é ideal para escolas de classe média e classe alta onde se tem verificado índices preocupantes de bullying e de neo-reacionarismos.
Muitos adultos se preocupam porque adolescentes jogam muitos jogos de computador e não passam muito tempo fazendo a tarefa de casa. Talvez porque os estudantes achem os jogos intelectualmente mais desafiadores que seu dever ou, simplesmente, mais divertidos. Seria possível a criação de jogos que se enquadrassem no propósito de ensinar História (TUOVINEN, 2003, p. 2)?
Para responder essa pergunta, primeiro devemos esclarecer o que é o RPG: Role Playing Games são a sinergia dos seguintes fatores: jogo, narração de uma estória, aventura imaginária, tática, ações, expectativa e, acima de tudo, diversão. Jogar um RPG é como ler um livro, mas o leitor pode mudar o enredo. Os RPGs se tornaram mais populares com o passar das últimas décadas, porém ainda são território desconhecido para uma infinidade de indivíduos. Maior parte dos jogadores de RPG é de jovens, talvez na faixa etária entre 15 e 25 anos, todavia há grupos de jogadores mais velhos e mais novos também. A idéia por trás de um Role Playing Game é tomar parte da consciência de uma personalidade (fictícia ou não) e guiá-la em uma ambientação respeitando as características psicológicas dela, usufruindo de suas técnicas e habilidades. RPGs tem freqüentemente elasticidade para diferentes tempos históricos, no entanto na maior parte dos jogos elementos de fantasia, como magia e monstros, estão inclusos. Habitualmente o período da ambientação (o pano-de-fundo para a narração dos acontecimentos) é o medieval, mas esse detalhe não é tão importante quanto um elenco e uma trama interessantes para preenchê-lo. RPGs de ficção científica são outra vertente assaz conhecida. RPGs convencionais são jogados em grupos de 3 a 5 pessoas, nos quais sempre uma delas (o Mestre do Jogo) não participa diretamente, pois ele dirigirá a aventura dos outros, arbitrando suas iniciativas de acordo com as regras e criando sucessivos desafios. Role Playing Games requerem altas doses de imaginação e concentração, uma vez que sessões de jogo podem durar várias horas (TUOVINEN, 2003, pp. 2-3).
Role Playing Games utilizados na escola precisam de regras simples, já que o professor não pode se estender muito na sua explicação. O objetivo principal é fazer os alunos incorporarem seus personagens, refletindo acerca das motivações de personalidades históricas. Reconstruindo eventos do passado, os estudantes entendem História melhor do que apenas aprendendo sobre os eventos, as causas e conseqüências no livro, no quadro-negro ou na exposição do professor. O RPG pode ensinar alunos a compreender que a apreensão da História não se resume a datas e pessoas mortas. RPGs podem ser vistos como a simulação da realidade do momento em que os alunos possuem um grau de conhecimento elevado sobre o evento narrado (TUOVINEN, 2003, p. 3).
Não há questionamento quanto à importância da História. A História é parte da humanidade e todo indivíduo precisa pensar sobre seu próprio passado. No entanto, reconhece-se que se apenas a “parte política maçante” for ensinada nas escolas secundárias boa parte dos alunos se alienará em relação à disciplina, conforme Vygotsky (1986, pp. 149-150 apud TUOVINEN, 2003, p. 5):¹
¹ “Practical experience also shows that direct teaching of concepts is impossible and fruitless. A teacher who tries to do this usually accomplishes nothing but empty verbalisation, a parrot like repetition of words by the child, simulating a knowledge of the corresponding concepts but actually covering up a vacuum.”
A experiência prática mostra ainda que o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tentá-lo não atingirá outro resultado que não uma verbalização vazia, uma repetição de vocábulos semelhante à do papagaio executada pela criança, simulando a verdadeira apreensão dos conceitos correspondentes e disfarçando um vácuo. (tradução nossa)
Role Playing Games também despontam a nuance dramática dos estudantes. O emprego do RPG em classes de História pode ser inclusive entendido como Dramaturgia pedagógica. Encenando eventos pregressos os alunos aprendem a dramatizar, no entanto a participação dos jogadores pode se tornar um problema na lição de RPG. Uma rodada de sucesso exige a participação de todos os componentes da turma para preencher o critério da inclusão de 100% dos elementos em sala de aula. Por conseguinte, o professor precisa desafiar os alunos ao ponto máximo (questionando, estando “contra”) e ao mesmo tempo incentivá-los (apoiá-los, estando “a favor”), uma postura dual. É também crucial abastecer os jogadores das mais claras instruções. As lições de RPG mergulharão no caos se os estudantes não souberem exatamente o que fazer. Eles precisam de uma quantidade suficiente de tempo para planejar suas ações tão adequadas ao contexto histórico apresentado quanto for possível. Se há improvisação demais nas jogadas a aprendizagem histórica tenderá a minguar, mas concomitantemente eles precisam de flexibilidade para pensar e interpretar por eles mesmos (TUOVINEN, 2003, p. 8).
Por fim, um exemplo de ambientação de um RPG curto para ser dado no espaço de uma hora/aula: demanda-se a escolha de uma fase espacial-temporal e a inserção dos estudantes no meio, cada um representando uma pessoa. Um dos tópicos para a lição poderia ser a Conferência de Haia e o fim da Segunda Guerra Mundial. Os participantes levariam as discussões adiante em grupos de três (Hitler, Stalin, Churchill) e elas seriam apresentadas como conferência para o resto da classe ao final. Se os alunos forem compenetrados na atividade eles provavelmente se divertirão mais do que numa lição ordinária e muitos não terão ciência imediata do quanto aprenderam (TUOVINEN, 2003, pp. 8-9)!
CONCLUSÃO
“Não há racismo nas escolas brasileiras”: é preciso tomar cuidado com esse tipo de frase. Não são poucos os autores que acusam a elite branca de racismo velado. Os indicadores estão aí para mostrar o handicap histórico brutal. Apenas o fato de ser aluno de escola pública ou privada quase pode selar o destino da pessoa (ABRAMOVAY, 2002, p. 194). Mais grave do que isso, há uma tendência da banalização de apelidos a minorias ou raças, e é o que se verifica com os nomes de que são chamados negros na escola, sem que agressor ou autoridades se dêem conta do perpetrado (Ibid., p. 196).
O RPG é apenas mais uma ferramenta de reforço da tolerância e do respeito mútuo, em sala de aula, enquanto fora não são tomadas providências: um homem que joga como uma mulher, um rico que atua como pobre, um conservador que deve ser um comunista, alguém que finalmente entende a dureza e a exigência embutidas no cargo de Rei, um branco nos EUA de Martin Luther King, estar na pele de um imigrante ou nativo colonizado... Estas são experiências antropológicas únicas!
Crianças com deficiência, que não falam ou falam de modo rudimentar aquela língua, que têm manias, excentricidades indisfarçáveis, e que por isso são caçoadas pesadamente; ou qualquer característica inerente ao ser que estimule chacota de colegas; ou pelo simples acaso, ou por demonstrar independência, maturidade ou sabedoria que os outros não têm, que sofrem com isso: todos esses casos são encarnações do bullying. Esse é o lado sombrio da democracia,7 que – ao dar, tragicamente, aparência de uniformidade (o “uniforme” escolar o traz já na nomenclatura) às pluralidades, tão numerosas quanto forem os seres humanos em jogo – acirra esse tipo de choque instaurando tiranias de maiorias, ou de minorias, quando estas se aproveitam da leniência dos demais para perpetuar seus preconceitos impunemente. Como vimos, contudo, a questão é tão delicada que as fronteiras entre vítimas e culpados se embaçam até os estertores do paradoxal. Resta a esperança de sempre poder pensar o diferente...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Miriam. Violences in Schools: summary / Miriam Abramovay et alii. – Brasília : UNESCO, Ayrton Senna Institute, UNAIDS, World Bank, USAID, Ford Foundation, CONSED, UNDIME, 2002.
ELEFANTE (Elephant). Direção: Gus Van Sant. Produção: Gus Van Sant. Roteiro: Gus Van Sant. Intérpretes: Alex Frost, Eric Deulen, John Robinson, Kristen Hicks, Matt Malloy e outros. [Manaus: Videolar, sob licença da Warner Bros. Entertainment], 2003. 1 DVD (colorido, 81 min).
TUOVINEN, Tuomo. Role Playing Games as a method of teaching History, 2003. Tese de pós-graduação defendida no Departamento de Educação Docente, University of Tampere, Tampere, Finlândia.