Quando os Radares Morais Falharam
Em fevereiro de 2017, um episódio do desenho Star vs. as Forças do Mal exibiu o primeiro beijo gay num desenho infantil. Os conservadores e os moralistas, que costumam ser religiosos, criticaram severamente a cena, acusando o desenho de estar erotizando as crianças, remetendo à velha e desonesta associação entre homossexualidade e pedofilia, e incentivar o "homossexualismo". Um pastor evangélico chegou até a propor um boicote à Disney, por mais risível que essa atitude pareça. A Disney está em melhor posição de negociar seus serviços por causas LGBT que os evangélicos, a exemplo do que se pode chamar de uma greve localizada no estado na Georgia em 2016, quando a Disney se recusou a gravar filmes no estado enquanto vigorasse uma lei estadual anti-gay que, como de costume, usava como desculpa a defesa da liberdade religiosa. Os bilhões de dólares que as gravações da Disney movimentam na economia de um estado são uma arma muito mais poderosa em favor da causa LGBT do que o boicote de uma leva de evangélicos paranoicos.
A associação entre LGBTs e pedofilia não é nova. Em junho de 2016, quando terrorista muçulmano Omar Mateen matou 49 pessoas na boate LGBT Pulse, em Orlando, o pastor protestante Roger Jimenez comemorou a tragédia com a seguinte declaração repulsiva: "“Vocês estão tristes porque 50 pedófilos foram mortos hoje? Eu acho que foi fantástico!". Os motivos dessa associação entre homossexualidade ou bissexualidade e pedofilia acontecer não são muito claros, mas o propósito é óbvio: descredibilizar o movimento LGBT. Existem, no entanto grupos pró-pedofilia como o NAMBLA, que atraem progressistas que defendem a pedofilia como extensão do movimento LGBT, considerando-a apenas mais uma forma de amor, ao mesmo tempo que atraem também conservadores como Nathan Larson, cuja defesa da pedofilia é uma extensão de sua extrema misoginia, pondo que a mulher deve servir ao homem, inclusive sexualmente, independente de sua idade. A associação forçosa desses grupos com o movimento LGBT, no entanto, é caluniosa. Pouquíssimos militantes da causa LGBT, ou mesmo simpatizantes da causa, são atualmente simpatizantes do movimento pedófilo. O movimento pedófilo é comumente estigmatizado até pelos grupos mais progressistas, mesmo pelos grupos que defendem a causa LGBT. O desenho Star vs. as Foorças do Mal não defende pedofilia.
Não se podia esperar que um beijo gay abertamente exibido na tela passasse despercebido aos moralistas, haja vista que seus radares já estavam bem sensíveis desde alguns anos antes, quando o alvo da crítica foi o desenho Avatar: a Lenda de Korra, que de fato apresenta um casal lésbico, embora o desenho não tenha nenhuma cena de beijo entre as personagens. Matérias de sites de notícia da época chegaram a exibir fanarts, que não faziam parte do material exibido do desenho, mostrando as personagens Korra e Asami se beijando, incitando assim a rejeição dos pais moralistas ao desenho. Muito, muito tempo antes disso, esses radares estavam desligados. Porque não detectaram um desenho animado cujo apoio aos LGBTs - embora a sigla ainda nem existisse em seu tempo de produção ou exibição - é muito mais forte do que o da lenda de Korra ou mesmo de Star vs. as Forças do Mal e que, ao contrário dos dois, defende a pedofilia.
Eu me lembro de ter 9 anos e estar na escola, bem pela manhã, na hora do recreio, e uma televisão ser ligada no pátio da escola para que as crianças que brincavam no intervalo pudessem assistir a esse desenho, que estava sendo exibido por uma emissora de televisão aberta. Eu, aos 9 anos, assisti a um episódio de um desenho animado pró-LGBT e pró-pedofilia junto a dezenas de outras crianças. Mas eu e as outras crianças que estavam no pátio da escola naquele dia fomos uma pequena amostragem do que acontecia pelo mundo. O desenho permaneceu por anos na grade de programação de emissoras de televisão aberta e era exibido também por canais infantis. Ele é longo, conta com 70 episódios e um longa-metragem, que foram exibidos em sua totalidade e reprisados. Nenhum moralista reclamou. Nenhum pastor evangélico propôs boicote ao estúdio que o produziu.
Olhando em retrospectiva isso é realmente intrigante. Como um desenho como Star vs. as Forças do Mal com seu inocente beijo gay causou uma histeria moralista e 70 episódios de defesa de relações homoafetivas e pedofilicas passou despercebido pelos radares morais do mundo? Mas isso é muito fácil de descobrir se analisarmos as coisas com um pouco mais de perspicácia. Em primeiro lugar, esse desenho vinha num invólucro que previne os desatentos de perceber do que se trata: ele se apresenta como um desenho de fantasia, de poderes mágicos e criaturas fantásticas. Mas não é. A parte fantasiosa da trama é secundária. Ele não é sobre poderes mágicos nem sobre criaturas místicas; é um desenho sobre amor. Mas desde que o próprio título do desenho faz referência ao seu caráter fantástico, isso só será percebido por quem realmente o assistir, e evidentemente não foi o caso da maioria dos pais na época.
Em segundo lugar, assim como A Lenda de Korra, ele não tem cenas explícitas. Existem casais homoafetivos nesse desenho, e eu percebia e estranhava isso quando era criança, mas esses casais eram apresentados de forma tão inocente que não escandalizavam ninguém - como de fato deveria ocorrer com pessoas que apenas se relacionam independente do sexo - e não houve nenhuma cena de beijo, nenhuma demonstração explícita de afeto. Há uma cena em que a protagonista finalmente declara seu amor pelo garoto de quem ela estava a fim. Ele lhe diz então que já amava outra pessoa. Ela lhe pergunta se essa pessoa é o irmão dela. O garoto então confirma com todas as letras. Um diálogo deixa tão claro quanto possível que dois personagens masculinos do desenho viviam uma relação homoafetiva. Mas não há cenas deles se beijando.
Um professor de 30 anos troca alianças com sua aluna de 10 anos. Mas não há cenas explícitas entre os dois, até porque, se houvesse, não haveria meios de exibir o desenho. Na verdade a troca de alianças ocorre apenas na história em quadrinhos que origina a série animada. No desenho exibido na televisão ela não acontece, embora o relacionamento entre o professor e a aluna seja tão claro quanto todos os outros retratados. O motivo disso ter sido deixado de fora da versão para a televisão é óbvio. De qualquer forma, é evidente que o objetivo do desenho ao apresentar um casal de um professor adulto e sua aluna criança é defender que essa é uma forma de amor, válida e bela como todas as outras. Exatamente o mesmo objetivo com que se colocou na série os casais homoafetivos.
Tampouco há cenas explícitas entre os casais heterossexuais da série. Há uma cena em que dois personagens, que terminam juntos no fim da série, contracenam numa apresentação de teatro na escola, e a peça encenada era A Bela Adormecida. Os gêneros dos papeis e dos atores eram opostos, de modo que ela representava o príncipe e ele a princesa, deitado e esperando que viesse o beijo. Mesmo sendo apenas atuação, o beijo hetero nunca ocorre. Quando ele está prestes a ocorrer, uma das entidades fantásticas interrompe a peça. Os casais homoafetivos, heteroafetivos e até mesmo pedofílicos estão representados da mesma forma na série: a relação entre eles é evidente no enredo, mas não há cenas explícitas.
Se houvesse cenas explícitas de demonstrações de afeto entre os casais homoafetivos da série, ela não poderia ser exibida como uma série para crianças. Poderia receber a classificação indicativa mínima de 16 anos e ser vendida como tantos romances gay que já existiam na época. E se houvesse cenas explícitas entre o casal pedofílico que o desenho exibe, ele jamais poderia ser exibido em lugar nenhum. Então, para passar a mensagem que o amor é belo, independente das pessoas que se amam, foi necessário que houvesse certas reservas. Quem fez isso foi bem sucedido. E eu realmente gostaria de saber quem foi. Embora eu discorde dessa pessoa em sua posição pró-pedofilia, eu a admiro pela sua ousadia. Não sei quem é. Esse desenho não apresenta o nome de seu autor. Quando se busca por essa informação na Wikipedia, nos créditos de abertura ou encerramento do desenho, ou em qualquer lugar, só o que se acha é o nome da editora que publicou a história em quadrinhos, posteriormente adaptada para a televisão. Não se acha o nome de um indivíduo responsável por essa obra. Admiro essa ousada anônima (provavelmente é uma mulher) não apenas pela sua ousadia, mas também por ter sido bem sucedida em disseminar sua ousadia ao mundo, sob o nariz dos conservadores.
Os moralistas e os religiosos frequentemente são paranoicos com o que a mídia, ou o governo, ou os Illuminati, ou quem quer que seja, coloca na cabeça das crianças. Às vezes, até rodar discos de vinil ao contrário e interpretar de forma funesta os ruídos incompreensíveis que então se ouve é o suficiente para que os paranoicos alardeiem suas conspirações. E nesse caso, é difícil pensar em algo a que eles seriam mais reativos: um desenho infantil que defende relações homoafetivas e pedofilia, sendo exibido para as crianças de manhã, na programação infantil da televisão aberta. Isso aconteceu e eles não perceberam. É infelicidade para os próprios moralistas que gostam de alardear e de boicotar que isso tenha passado despercebido. Foi a única chance que eles tiveram de fazer uma acusação justa a alguém de defender a pedofilia e não de forçosamente atribuir a defesa da pedofilia a quem apenas defende direitos LGBTs. Nesse caso, a acusação de apologia à pedofilia teria sido correta. Mas ela não aconteceu. Os radares morais falharam.
Não estou dizendo que o desenho animado foi parte de uma conspiração obscura. Era apenas uma obra audiovisual com uma mensagem, com um ensinamento. Quase toda obra de ficção tem uma mensagem ou ensinamento embutido. Só ocorre que a dessa obra é uma mensagem escandalosa, controversa até os dias de hoje, e foi passada pela televisão aberta há quase 20 anos. Imperceptível aos radares dos conservadores, religiosos e moralistas. A mensagem subversiva foi passada às crianças. Os radares morais falharam.