Democracia: Quando parece mas não é.
Considerações sobre um jogo estranho.
A confusão entre democracia e “vontade da maioria” por meio do processo eleitoral demonstra não somente uma falta de compreensão do conceito de democracia nas sociedades modernas e dos valores fundamentais que sustentam os sistemas que buscam encarnar tal conceito. Revela, além disso, um erro de raciocínio. Estamos diante de um problema lógico-semântico. A lógica proposicional possui um axioma: Dizer que todo S é P não é o mesmo que dizer que todo P é S. Ora, se eu digo que “Todo homem é mortal” não estou afirmando que “Todo mortal é homem”.
Da verdade da proposição “Toda democracia pressupõe o processo eleitoral” não se segue a verdade da proposição “Todo processo eleitoral pressupõe a democracia”. É possível ter um líder, escolhido pela maioria, em um processo eleitoral previsto pelos ritos jurídicos, e ainda assim, não termos uma democracia, pois a realização de eleições, embora em determinadas concepções teóricas possa ser uma condição necessária para a democracia, não é condição suficiente. Para termos um jogo de futebol, é necessário termos uma bola de futebol, um espaço como campo ou quadra, dois times. A reunião de tais fatores constituem uma condição necessária para o jogo, mas não uma condição suficiente.
Se dois times de futebol, entram em um campo de futebol, com uma bola de futebol, e ficam noventa minutos tocando a bola entre si, com o acordo tácito de não fazerem gol, mas de acertar o travessão, o jogo em questão será um novo esporte, seja lá com que nome, mas não será futebol. Pretensamente nenhuma regra foi violada. Os times estão em campo e se comportam como se jogassem futebol. Satisfazem todas as condições necessárias para que a partida seja chamada de futebol. Mas, internamente, não tem compromisso algum com a “axiologia do futebol” e seu valor supremo, “fazer gol”. Eles se comportam como se jogassem futebol: os mesmos movimentos, a mesma dinâmica. O árbitro não sabe, mas os jogadores não desejam fazer gol. Desejam acertar os travessões. Pode ser, até, eventualmente, que nessa de tentar acertar o travessão, a bola entre… Isso reforçaria a impressão geral de que é uma partida de futebol. Os jogadores, bizarramente, não comemorariam. Os analistas mais argutos começariam a perceber que há algo de muito estranho, não no nível formal do “devido processo legal” que sustenta o jogo, mas em um nível mais profundo.
Agora pensemos que os jogadores tem um acordo íntimo mais exótico. Não acertar as traves, mas as bandeirinhas de escanteio. Já não precisaríamos nem de tanto tempo, nem de tanta capacidade analítica, para compreender que apesar de todo o disfarce estético, há uma farsa em curso.
Com a democracia não é diferente. O jogo que se desdobra no campo político atual parece democracia, funciona conforme as regras formais da democracia, encarna a estética da democracia e pretensamente preserva a etiqueta da democracia, mas no nível mais profundo os jogadores, os players, desprezam os valores mais centrais da democracia. A existência de “eleições livres” e “instituições independentes e constitucionais” não basta para apontarmos para o Brasil atual e dizermos categoricamente: “Vê, isto é uma democracia”. Precisamos nos perguntar se os atores políticos estão realmente comprometidos com os valores democráticos fundamentais.
Pergunta retórica! Conhecemos a resposta. Há anos.