Adeus à democracia?
Vivemos uma época negativamente extraordinária, marcada por ataques, alguns articulados, outros canhestros, contra os valores e instituições que marcam o ideal de democracia nas sociedades modernas. Embora a democracia formal seja mantida, por meio do processo eleitoral, conforme os “devidos ritos legais”, assegurando que o voto da maioria eleja seus representantes, há dois elementos que ameaçam o espírito democrático em sentido mais profundo. O primeiro é a participação de forças estranhas nos processos eleitorais. Em que medida a escolha da maioria é representação de uma liberdade factual e não apenas formal, quando esta é intensamente induzida, das formas mais escusas, a tomar uma direção? Creio que uma análise profunda do papel das fake news e do fenômeno da pós-verdade seja essencial para compreendermos esse tópico.
O segundo elemento que ameaça o espírito democrático reside no fato de que os líderes recentemente eleitos pela maioria, não somente não cultivam os valores humanísticos mais básicos, como deles desdenham, deles discordam vorazmente.
A democracia não é a simples vontade da maioria. Não é um mero parâmetro quantitativo. É uma constante busca por construção de um ambiente dotado de racionalidade, quer permite a comunicação e o debate, mas que a despeito de todo debate, chega a consensos mínimos acerca de princípios básicos intocáveis: não legitimar a tortura e o extermínio, não relativizar crimes contra a humanidade, como genocídios, não atentar contra a liberdade de expressão e os direitos individuais, não perseguir as minorias, antes, assegurar-lhes o direito à autodeterminação e prover-lhes a segurança, cultivar as ciências, artes e letras e o patrimônio cultural comum da humanidade, preservar a imprensa livre, independente, como um dos valores de nossas sociedades. Alguns atores, no Brasil e em diversas partes do mundo, simplesmente ignoram tais coisas.
O perigo real à democracia tem gerado uma ampla literatura sobre o tema. Vou insistir nesse tópico. A professora de Relações Internacionais na Georgtown University, em Washington DC, Madaleine Allbright, autora de “Fascismo: Um alerta”, Yascha Mounk, cientista político da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, autor de “O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”, cientistas políticos como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da Universidade de Harvard, autores de “Como as democracias morrem”, e o pesquisador em filosofia política, David Runciman, da Universidade de Cambridge, autor de “Como as democracias chegam ao fim”, discorrem, com mais ou menos pessimismo, sobre como a democracia, neste início de século, vem sendo constantemente atacada, não a partir de fora, por outros regimes ou formas de organização política, mas de dentro de suas entranhas, como uma fortaleza que vai aos poucos sendo devorada por cupins.
O momento vivido pode ser um aceno, uma despedida, um murmúrio.
Será que chegou a hora de nos despedirmos da democracia?