80 tiros: o “holocausto” de um inocente

A sociedade brasileira – aqui representada pela família tradicional brasileira – está em pecado! Não digo que cometeu um ou outro erro, mas afirmo que nasceu, se desenvolveu e continua em pecado contra seus filhos de pele preta – principalmente aqueles em que não se encontra uma mancha branca. Este “pecado” não se traduz por um “erro do alvo”, mas, ao contrário, por constantes e seculares “acertos nos alvos” que são os corpos negros.

Desde o tráfico de africanos escravizados, passando pelos crimes cometidos nas senzalas e nas casas-grandes, nos sobrados e nos mocambos, durante a Escravidão, chegando até a negligência e o abandono genocidas cometidos pelo Estado Brasileiro no período pós-escravidão; desde todo esse tempo a sociedade brasileira incorre neste grave erro que é o racismo – e o faz tanto por pensamento, como por obras e omissões.

Nos dias de hoje – quando esse pecado é desgraçadamente verificável através dos índices de assassinatos de jovens negros nas periferias das cidades – agora inclusive através de snipers – e na ausência de pessoas de pele preta nos cargos e postos de poder, de mando e de prestígio deste país – o peso desse pecado foi agravado pelas recentes decisões de parte do eleitorado nacional, o qual, sob o argumento de limpar a corrupção das cadeiras do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, creditou seu voto a falsos profetas, os quais, dizendo-se falar em nome da Justiça, andam de mãos dadas com a injustiça, dizendo-se falar em nome da Lei, dançam sorridentes com a ilegalidade, dizendo-se a favor da vida, cultuam a morte e os instrumentos de morte.

Para a infelicidade de todos nós brasileiros – os que neles votaram e os que não votaram –, os eleitos “falsos profetas da Justiça” falavam precisamente em nome daqueles que são os responsáveis diretos pela origem, disseminação e manutenção do racismo entre nós. Como consequência disso, já se ouve e se vê pelas ruas do Brasil uma disposição e uma liberdade revigoradas em se declarar racista, em se gritar em alto e bom som que os brasileiros de pele preta são seres de menor importância e de insignificante presença humana. Já se vê novamente as agressões abertas, inclusive televisionadas, a negros e negras, em nome de uma consciente ou inconsciente tese de superioridade ou supremacia branca. Novamente é possível fazer isso sem se preocupar com a repercussão entre os populares, já que nem o Poder Judiciário e nem os outros Poderes se mostram interessados em conter tal ímpeto social. Há hoje como houve nos tempos da Escravidão, uma indiferença com a dor dos corpos negros.

Infelizmente, após a eleição dos “falsos profetas da Justiça”, o vírus do racismo, que sempre fez morada no coração da sociedade brasileira, agora reencontra o clima e o ambiente favoráveis à sua disseminação em massa pelo país, através das redes sociais – ferramentas sob o domínio daqueles que possuem dinheiro suficiente para criar sites, blogs, grupos e notícias na rede mundial de computadores, quer sejam de origem lícitas ou de origem ilícitas, declaradas ou anônimas.

Assim, diante da consciência do erro que cometera, a parte da família tradicional brasileira não alinhada completamente com o ideal de supremacia branca – mas que foi decisiva para promover e eleger os “falsos profetas da Justiça” –, rogou e roga ao “deus de sua consciência” por perdão e misericórdia! E, como numa metáfora medonha de sua atual condição de “nação em pecado”, esta parte da sociedade brasileira – que poderia ser chamada aqui de classe média branca – testemunhou e continua testemunhando, de maneira inerte e extática, o holocausto de um “carneiro’ para este mesmo “deus”, do qual esperam redenção e perdão pelo grave erro em que sempre esteve e que agora foi revigorado pelos falsos profetas que alçaram ao poder.

O fato é que, dias antes de comemorarem seu tradicional evento pascalino, essa parte da sociedade brasileira que foi determinante para a eleição dos “falsos profetas da Justiça”, testemunhou, juntamente com o restante de nós brasileiros pobres, índios, negros e brancos contrários aos “falsos profetas da Justiça”, o fuzilamento de uma família de pele preta, da qual um homem inocente foi alvejado com oitenta tiros.

Ele foi “queimado”, por assim dizer. Foi “oferecido” em “holocausto”, por assim dizer!

E, fazendo uma alusão e levantando uma hipótese, foi ele o “carneiro escolhido” entre os demais daquele “carro-altar” para ser oferecido em “holocausto” ao “deus da consciência coletiva” da classe média brasileira, como forma de confessar seu grave erro e pedir perdão por ele. Como determinado pela liturgia, o carneiro deveria ser macho e sem mancha, e, neste caso, foi um homem de cor negra, sem qualquer mancha branca e sem qualquer culpa que justificasse pelo menos um dos oitenta tiros.

Os executores do holocausto foram, justamente, aqueles que agora voltam como Sacerdotes da Pátria, protetores de uma ilusória democracia e mantenedores de uma suposta liberdade nacional. E, como mostra de que esses “sacerdotes” são “santos”, no sentido de “separados” e de isentos de culpabilidade, foi-se dito pela boca de um dos falos profetas, que eles não mataram ninguém, mesmo tendo disparado e alvejado oitenta vezes um corpo negro. Ninguém foi assassinado! Sim, é claro que não! Foi um sacrifício e não um assassinato, pode-se entender.

Após a oferenda ser consumada e tratada como um “incidente”, esta parte da sociedade brasileira, que fala na televisão em horário nobre, que grita nas “avenidas paulistas” e que bate panelas do alto de seus condomínios fechados em nome da família tradicional brasileira, em silêncio piedoso e contrito, prepara-se para, mais uma vez, celebrar o respeitável evento pascalino, relembrando com muito vinho e peixe, as dores sofridas por um homem inocente, assassinado há mais de dois mil anos, também sob alegações falsas, demência coletiva e furos em seu corpo.

Voltando a citar a metáfora medonha, é como se a sociedade brasileira – aqui representada pela família tradicional brasileira – tivesse realizado um “holocausto” ao “deus de sua consciência coletiva” – pelas mãos lavadas dos Sacerdotes da Pátria – e estivesse redimida – pelo menos por algum tempo – de seu grave erro, para celebrar em paz e sem culpa, a sua anual “festa dos ovos de chocolate”.

Porém, se entre um ovo de chocolate e outro alguém lembra que o inocente crucificado ressuscitou, vale lembrar que o inocente alvejado não voltará.

Fabio Ferreira S
Enviado por Fabio Ferreira S em 14/04/2019
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