UM NOVO DESATINO

Ler “A História da Loucura na Era Clássica”, de Foucault, neste momento, talvez seja uma das chaves para entendermos certas insanidades da nossa “era moderna”, desse nosso louco século XXI. Mas, como o livro é um mar imenso de elucubrações e investigações filosóficas, creio que poucos se aventuram a singrá-lo. Então, vou apenas me basear em algumas de suas informações e investigações, para tentar desvendar um pouco do ser humano atual, que se diz tão “avançado”, mas cujas ideias e filosofia de vida mais se aproxima da idade média do que até mesmo dos séculos XVII e XVIII abordados por Foucault.

Somos a era da tecnologia, mas não uma era iluminada em termos de visão de mundo, pelo menos não em termos globais. Com sete bilhões – e aumentando – a população desse nosso planeta perdido está mais envolta em trevas de demônios e superstições do que sonha nossa mais improvável filosofia. Há poucos luminares, filósofos, artistas, poetas, escritores, políticos (esses, então, pouquíssimos!) que tenham uma visão de mundo em consonância com toda a tecnologia e todas as descobertas e teorias científicas de que dispomos. A maioria absoluta da população está mergulhada num deísmo fundamentalista ou, se não chega a ser fundamentalista, é um deísmo supersticioso de crenças absurdas, que envolvem desde práticas primitivas de liturgias e cultos até a crença popularizada pela mídia de grande circulação em horóscopos e magos que preveem o tempo ou curandeiros que prometem a cura de unha encrava ao câncer, ou então, a promessas absurdas de líderes religiosos que pretendem expulsar o demônio dos corpos doentes e promover milagres devidamente encenados para arrancar dinheiro dos mais pobres, não só de espírito, mas também de grana, para enriquecer à custa do empobrecimento dos que neles acreditam; aiatolás embrutecidos pela guerra santa, a cometer crimes terríveis, assombrando o mundo com atentados e exércitos medievais de recuperação de crenças fundamentalistas de ódio a tudo quanto não esteja de acordo com seu pensamento retrógrado e assassino. A lista de insanidades – chamemo-las assim – alonga-se e não é de nosso interesse ir até ao seu final. Todos os que tiverem chegado até aqui, neste texto, sabem muito bem do que estou falando.

O ser humano esqueceu muito rapidamente o mal das ideologias políticas extremadas, sejam as da esquerda (principalmente o stalinismo) sejam as da direita (colonialismo, capitalismo, nazismo, fascismo). Ou melhor dizendo, esqueceu muito mais rapidamente o mal das ideologias da direita e vem sistematicamente ressuscitando todas elas, reciclando-as e tornando-as o novo avatar para o futuro da humanidade. O colonialismo deixou de ser o de conquista territorial, para transformar-se no colonialismo cultural ou político, através do domínio dos meios de comunicação ou através de imposição da superioridade armamentista do “leão do norte”, os Estados Unidos da América, com sua sede insaciável por commodities que lhe satisfaçam o apetite consumista, à custa da destruição literal de países nos quais intervêm com o uso de bombas e armas poderosas ou através da intrusão em suas políticas, derrubando sistematicamente os governos que não lhe sejam favoráveis, na América Latina ou em qualquer parte do mundo que lhes interesse. O capitalismo, por sua vez, evoluiu para o chamado neoliberalismo e para os impérios corporativos mundiais, em que grandes, imensas empresas dominam o mercado de vários países ao mesmo tempo, com ganhos trilionários, à custa de mão de obra barata, às vezes até mesmo da mais deslavada situação de escravidão de populações inteiras, da exploração de insumos de forma predadora, sem qualquer respeito ao meio-ambiente, contribuindo, assim, em grande parte, para a deterioração da vida terrestre, através da poluição e do aquecimento do planeta. Já o nazifascismo ganhou inúmeras fauces, todas elas terríveis, e é sobre elas que nos deteremos um pouco mais, para tentar entender certas atitudes quase incompreensíveis, principalmente de jovens assassinos seriais.

As ideologias nazifascistas divulgadas pelas redes sociais, pela internet profunda, pelos sites de doutrinação, enfim, divulgas através da rede mundial de computadores, apresentam filosofias afirmativas de grande apelo popular, seja por pregarem de forma clara ou sutil o ódio, seja por elevar a autoestima de pessoas que estejam em situação de fragilidade psicológica ou mental, por estarem passando por alguma situação difícil ou por serem muito jovens e ainda não terem desenvolvido uma visão de mundo menos tóxica, para usar um termo de fácil compreensão atual.

Essas ideologias atraem tais mentes porque abrem perspectivas de fortalecimento do ego, da ideia de que “eu posso”, de que “eu sou um super-homem”, de que “os que me desprezam podem ser destruídos”: num jogo de ficção, destruímos nossos inimigos em nossas mentes, o que nos leva a uma catarse aliviadora de nossas frustrações e de nossos ódios, mas na “vida real” dos sítios de ódio, a destruição do inimigo transforma-se em algo físico, ou com possibilidades de sua destruição física, daí o culto às armas. E as armas que, na ficção, são simbólicas, aparecem aqui como êmbolos concretos de atração, pela sua beleza destrutiva, seu design de objeto de luxo, seu poder de alcance e, principalmente, pela possibilidade de aquisição, seja através de sites clandestinos ou de informações privilegiadas que levem ao traficante mais próximo.

Então, chegamos ou tentamos chegar à mente do adolescente e do jovem de hoje: se ele não tiver tido uma formação sólida em termos de valores saudáveis, não importa, aí, a ideologia ou a religião; se não tiver uma família que o ampare e proteja, e não apenas o critique e puna por suas idiossincrasias e por suas dúvidas e erros próprios da idade; se ele não tiver o respeito de sua tribo, ou seja, de colegas de escola e amigos, de pessoas que também tenham valores saudáveis; se ele não tiver uma perspectiva de futuro, através de uma visão de esperança e de vida; enfim, se sua mente estiver conturbada por imensas dúvidas e descrenças, por sonhos absurdos de megalomania, ou seja, por aquilo que Foucault chama de desatino, que era uma espécie de loucura da era clássica, mas que parece permanecer na mente humana até nossos dias, os sites nazifascistas que apregoam a força do indivíduo sobre o coletivo, o ódio a todos aqueles que lhe fazem mal ou sejam obstáculos – reais ou imaginários – à realização do seu ego, do seu individualismo exacerbado pelas crenças fundamentalistas, seja de origem deísta ou meramente de culto à violência, ao poder individual, exercem sobre esse jovem um poder de atração incoercível e impossível de podermos medir até onde pode levar o fanatismo que se impregna na sua mente e na sua weltanshauung, e até mesmo desencadear mecanismos de ódio que o levem a agir e sua ação à destruição de inimigos reais ou inventados, ao massacre indiscriminado de outros seres humanos, simplesmente num ato de vingança não exatamente contra aqueles que estão sendo atingidos, mas contra toda a humanidade. Tudo isso apimentado, se assim podemos dizer, por uma certeza de que serão, se morrerem, considerados heróis por seus pares, exaltados os seus feitos pela mídia, mesmo aquela que os condenam, além de esperarem, muitas vezes, recompensas absurdas numa outra vida.

Temos, portanto, em pleno século XXI, um novo tipo de desatino, de quase loucura, que não está catalogada em nossos manuais de psicologia e psiquiatria, que é o desatino ideológico, a loucura ideológica, provocada numa mente fragilizada por um discurso altamente atrativo de ódio e de superação, apesar de as duas palavras parecerem paradoxais. Porque, na verdade, são esses tempos em que vivemos tempos paradoxais. Convivemos com a mais alta tecnologia, que nos permite curar doenças que há dois séculos matavam em poucos dias ou eram incuráveis, que nos permite perscrutar os mais remotos recônditos do universo, que nos permite viajar através da Terra com velocidades impensáveis, que nos permite que nos comuniquemos uns com os outros instantaneamente, mesmo que estejamos a centenas de milhares de quilômetros distantes, que nos permite unir vozes e compartilhar nossas emoções, nossas ideias e nossa vida com milhares ou milhões de outras pessoas, e, ao mesmo tempo, estamos cada vez mais isolados em nosso próprio ser, em nosso próprio mundo individual, curtindo e remoendo nossa própria bile, para despejar para os outros não o nosso lado melhor de seres humanos, mas as nossas idiossincrasias, nossos preconceitos, nosso racismo, nossos ódios a tudo quanto é diferente e, o que é pior, tudo isso se espalha por todos cantos, aumentando e retroalimentando, num círculo vicioso, nossa visão de mundo deturpada e tóxica (abuso do termo), ao parecermos conectados com milhares de outros seres que pensam exatamente como nós, numa espécie de fermento onde borbulham as larvas do ressentimento e do desatino. E só parecemos conectados, porque, na verdade, nas redes sociais de que participamos, nas quais compartilhamos tudo o que nos vem à cabeça, há um imenso abismo de solidão, de profunda e amarga solidão a nos soterrar e embrutecer.

15.3.2019

(Do blog Veneno de Cobra):

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