OS SOBREVIVENTES DA MISÉRIA

Lembro-me que na minha infância vivíamos tempos de extremas dificuldades. Éramos prisioneiros da miséria; um tipo de prisão cruel, injusta e covarde; inevitável para aqueles que tivessem a infelicidade de nascerem ali; e da qual só se libertavam os mais bravos, inteligentes e determinados. Impossível sair sem sequelas ou qualquer tipo de dano mental, pois éramos inocentes crianças, cheias de fé e esperanças e estávamos submetidas às mais terríveis privações e falta de perspectivas em nossas vidas.

Mesmo assim continuávamos sendo crianças. Corríamos, brincávamos, sorriamos, aprontávamos “molequices” como quaisquer outras. Fabricávamos nossos próprios brinquedos e inventávamos nossas brincadeiras. Muitas de nós, sequer se davam conta de nossa terrível realidade, mas todas tinham consciência da posição de inferioridade e pobreza de suas famílias; muito embora, sendo crianças, isto pouco nos afetasse naquele momento.

Estudei o Grupo Escolar Rotary Club Goiânia Leste, às margens da rodovia BR153, na Vila Bandeirantes. Era o único que existia naquela região. A rodovia representava um perigo que todas as mães daqueles alunos temiam, mas também era um divisor social: Do seu lado esquerdo, de quem vinha no sentido São Paulo a Goiânia, ficava a classe média. Setor Universitário, Vila Bandeirantes, Vila Morais e Vila Iate. Eram meninos da pele viçosa, cabelos brilhantes e dentes esmaltados...

Já do seu lado direito, ficava a classe miserável: Jardim Novo Mundo, a quem a classe média chamava de “Guariroba”, para humilhar; Vila Água Branca e Jardim Califórnia. Crianças raquíticas, barrigudas, encardidas, magras, com as bocas chefias de dentes cariados.

Dentro da escola a divisão continuava; as professoras exerciam notória preferência pelos meninos mais ricos. Lembro-me que quando um deles solicitava qualquer ajuda, ela vinha de imediato; regadas com palavras de carinho e simpatia. Eles chamavam as professoras de Tias, dava inveja. Já nós da classe baixa, quando solicitávamos o auxilio das professoras levávamos um bronca seguida da recomendação de que nossos pais deveriam acompanhar melhor nossos estudos. Nem se quisessem; nossos pais eram analfabetos ou semianalfabetos. As professoras não aceitavam que as chamássemos de Tias.

A merenda escolar naquele tempo se resumia em um copo leite amarelado, doado pelos Estados Unidos, o qual era servido puro e com pouco açúcar e provocava gases, tornando a sala de aula, depois do recreio, num ambiente quase inóspito.

Não conhecíamos as palavras bullying, preconceito e discriminação, mas sentíamos seus efeitos práticos. Até Neocid, um tipo de inseticida em pó, a Diretora aplicava em nossas cabeças, segundo ela, para combater piolhos.

Nossas casas, ou barracos, eram feitas de tijolos de barro que nós mesmos fazíamos; as ruas eram sem asfalto e o mato tomava conta do bairro. Na verdade vivíamos iguais a nativos em suas tribos, com poucos recursos e pouca ou nenhuma possibilidade de melhoria. Mas o pior de tudo é que a pobreza vem sempre em “pacotes completos”: Violência doméstica, molestação sexual, prostituição, bandidagem e drogas.

Felizmente, nem todos nós fomos atingidos ou apanhados por estes intempéries (se é que se pode chamar assim, minimante). Os mais fortes, bravos e inteligentes; ou com mais sorte, conseguiram se livrar. Sobreviver também a isso.

O resultado de tudo foi uma terrível “peneira” ou “funil de gargalo muito estreito” que fez com que, de cada cem crianças daquele tempo e daquele lugar, uma ou menos chegasse à faculdade. Porém muitas sobreviveram; se tornaram pessoas boas e honradas. Outras venceram na vida mesmo com pouco estudo. Fato é que cada uma delas podem e devem ser chamadas vencedoras, pois vencer na vida nunca foi fácil; mas vencer na vida, contra tudo e contra todos como nós fizemos é um feito mais grandioso ainda. É como aquele herói que levou a mensagem a Garcia no ensaio escrito por Elbert Hubbard em 1899.

Pois bem, eu sou uma destas crianças. Não sou rico ainda, mas venci a miséria, o preconceito, a falta de fé, de esperança e perspectiva. Vivo bem e sou feliz. Sou um homem honrado e culto. Tenho mais de uma graduação em curso superior e me considero verdadeiramente um VENCEDOR. Deixo aqui minha história, pois hoje tudo é bem mais fácil, se pude, todos podem, pois o ser humana; este ser maravilhoso, certamente é fruto do meio onde vive, mas é o único ser que tem o poder de modificar o meio que vive.

Dom Luizito
Enviado por Dom Luizito em 02/03/2019
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