Ausências

Ausências

Tenho o hábito de fazer o sinal da cruz diretamente na testa de todos os mortos que visito, antes que sejam sepultados – faço uma oração e o sinal da cruz representa o meu mais sincero adeus. Aliás, tenho duas manias, verdadeiros rituais que busco executar sempre que vou a velórios. O segundo, é o de conduzir o esquife até a campa. O primeiro hábito, herdei do meu avô, por imitação. O segundo, não sei a origem. Sei apenas que se não o fizer, algo me incomoda muito e passo vários dias em penitência, acreditando que não fiz o suficiente naquela despedida. Penitência, incômodo e “insuficiência” são, não por acaso, três palavras que andam rondando meus momentos de solidão nos últimos meses.

Velar familiares é uma obrigação cidadã. Abraçar amigos que choram seus entes que partiram, gesto fraterno que merece a gratidão do anonimato, posto que nós nos fortalecemos diante do abraço que damos a quem chora. Na verdade, no abraço está um fluxo de energia que revigora, alenta e tranquiliza, principalmente quando lágrimas banham nossos ombros. É uma troca onde quem mais se beneficia é quem menos precisa, pois o doar-se é a melhor expressão do encontro interior que precisamos fazer na tentativa incessante de reorientar nossa existência.

Penitência, por que me incomodas? O arrependimento está em não ter feito mais, em não conhecer mais profundamente os familiares daqueles que comigo convivem. Como é estranho e sufocante conhecer a genitora de um companheiro de trabalho apenas no dia do velório. Onde estive esse tempo todo que não me convidei para uma visita? Lembro que os padres, pelo menos os da minha época juvenil, visitavam as casas da comunidade. Entravam. Sentavam. Conversavam. Faziam perguntas. Tomavam um cafezinho e partiam, estreitando laços. Os pastores precisam conhecer seu rebanho... Por que apenas na hora da morte, por quê?

Incômodo, por que me persegues? Não faz bem perceber lacunas não preenchidas. Haverá outras mortes, é bem verdade, mas por que não conversamos mais, não ouvimos mais, não percebemos os sinais dos aflitos que nos rondam o cotidiano? Há tanto espaço para tolices, reclamações, insatisfações, discordâncias, mas como é difícil olhar nos olhos de um amigo e dizer: “Posso conhecer sua família? Seus pais, irmãos”. A cidade é pequena, todos já se conhecem. Que tolice! As aparências não revelam o desbotado da realidade, não mostram as angústias reprimidas nem denunciam os que choram madrugada afora, mas enxugam as lágrimas e vão trabalhar. Será que um “Você está bem?” resolveria?

Insuficiência, por que não me açoitas? Ser incapaz de perceber a dor alheia me torna incompetente. O egoísmo não pode superar a magia da cumplicidade, do diálogo e do se colocar no lugar do outro. Não aceito massagens no ego. Ser bom não é o suficiente quando negligenciamos a dor alheia. Um sorriso, um abraço, um cumprimento. Que sejam breves, pouco importa, mas que sejam verdadeiros... O que custa tentar ouvir o outro, fazer perguntas simples e guardar um pouco do dia, de todos os dias, para o alento de outras almas? Custa, talvez, o preço da vida que não tivemos o prazer de conhecer.

Vários corpos estáticos, todos sem vida, invadiram minhas memórias. Em quase todos, lá estava eu, segurando uma das alças, enquanto o cortejo fúnebre prosseguia, interrompido por lágrimas e silêncios. Ninguém fez o sinal da cruz e o corpo desceu, deixando saudades e questionamentos que burilam nossas reflexões.

Nijair Araújo Pinto – Ten Cel QOBM

Cmt do 4º Grupamento de Bombeiros

Publicado no jornal "A Praça", Iguatu.

16/02/2019.

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 16/02/2019
Reeditado em 16/02/2019
Código do texto: T6576284
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