Análise da burrice humana
Que o ser humano está propenso à ignorância, esta é uma certeza ainda maior que esteja propenso, em meio educacional, a tornar-se inteligente. Isso porque a ignorância, de certa maneira e num certo grau, acompanha nossos passos muito mais veementemente que o conhecimento, já que no comum da vivência social convivemos com máximas de senso comum arraigadas em nosso espírito – seja por fins de dominação, seja por inocência e infantilidade – que não se relacionam com um modo inteligente, sábio ou funcional de avaliar os fenômenos naturais e sociais. A sabedoria do senso comum existe, mas se observe que este nem sempre é sábio, nem sempre parte de princípios idôneos e inteligíveis. Entretanto, o que seja ignorância pode ser tratado, quando nos dispomos ao aprendizado. A burrice, por sua vez, que é o tema deste texto, ultrapassa o estado da ignorância, porque é uma disposição do espírito presente naqueles que se recusam ao aprender, e não uma simples falta de conhecimento. É uma resistência ao saber.
Ora, para entendermos isso temos de ter em mente que cada ser humano vem ao mundo com uma particular potencialidade intelectual. Não somos todos iguais. Portanto, deparamo-nos com pessoas com QIs ou outras capacidades não mensuráveis altíssimas – nas artes, na matemática, na lógica, na física, na linguagem, nas atividades esportivas etc. – como temos quem venha ao mundo com capacidades aquém, com Deficiência Intelectual, por exemplo, ou outros atributos que retardem o seu processo intelectivo. Se formos, pois, medir a burrice em relação a tais capacidades, precisamos atentar à diversidade que nos divide, ou agrupa. Uma criança com DI (Deficiência Intelectual), ao realizar um trabalho escolar, pode surpreender por sua capacidade, ou inteligência, desde que enquadremo-la no processo escolar, em sua evolução individual. Com muito pouco, ela pode, segundo o seu nível intelectual, demonstrar-se vitoriosa perante um aluno mediano ou um superdotado que ainda não desenvolveu bem sua maturidade. Alguém com DI, desse modo, pode ser uma pessoa bastante inteligente, desde que meçamos essa inteligência a partir da consciência de sua especialidade. Portanto, uma dificuldade de aprendizado não denota burrice.
Uma pessoa com inteligência acima da média não é, pode-se abstrair, uma pessoa “burra”. Contudo, pode muito bem ser emocionalmente mais frágil que qualquer outra pessoa de inteligência mediana e não saber lidar bem com seus sentimentos e com relações interpessoais. Outros, ruins em matemática e português, são extremamente hábeis com tais relações inter e, ademais, intrapessoais, o que os faz notórios na liderança de grupos, por exemplo.
Como é perceptível, chamar alguém de burro implica em ter ciência dos vários níveis que pode alcançar a inteligência humana e das debilidades intelectuais que afligem uma parcela da população. E, pensando assim, pode-se avaliar que a burrice não existe, existem sim diferentes tipos de inteligência. Entretanto, não é raro ouvirmos da boca alheia (se não de nossa própria boca) declarações que nos forçam a dizer: “Que burrice!” Declarações a que recorrerei (a algumas) para tentar expressar o que realmente denote alguém “burro”, a meu ver. E colherei tais declarações da atualidade brasileira, a qual se tornou um campo fértil para tal análise, frente ao que vemos e ouvimos nas redes sociais e demais meios de comunicação de massa. Colho-as estas porque também são públicas e serão por mim julgadas como já foram por muitos outros.
O primeiro exemplo do que seja burrice trarei de um senhor que se autoproclama filósofo brasileiro e que não me parece mais que um embuste (opinião minha). Olavo de Carvalho tem defendido, por exemplo, a visão geocêntrica, opondo-se ao heliocentrismo. Não quero questionar que o faça. Faça-o. Não acredito que seja ruim ou inadmissível questionar os pontos de vista divulgados, nem ao menos aqueles provenientes das pessoas mais ilustres. Desde Aristóteles (século IV antes de Cristo), por exemplo, acreditava-se que dois objetos de pesos diferentes caíam em velocidades diferentes, quando não sofriam grande resistência do ar (como a pena ou uma sacola plástica). Galileu Galilei, por volta do ano de 1600 (quase dois mil anos depois), foi o primeiro a questionar e a testar essa afirmação, provando que objetos com pesos diferentes eram atraídos pela gravidade de maneira idêntica, ou seja, caíam com a mesma velocidade, contrapondo Aristóteles, uma das maiores sumidades filosóficas de todos os tempos. Galilei também passou tempos, depois de inventar um telescópio mais poderoso que os de brinquedo, existentes à época, observando o céu e desenhando mapas acerca das estrelas até adotar, por observação, a teoria copernicana, que alude ao heliocentrismo. Mais tarde, também Newton afirmou o mesmo, estendendo os estudos acerca do movimento dos astros sob a força da gravidade.
Newton era uma figura monástica em relação a suas pesquisas. Isolava-se e pouco tinha vivência social. Despendia todo o seu tempo estudando e pesquisando, até que chegou a uma das maiores e mais importantes obras de todos os tempos, que até hoje influencia e guia os estudos da física. Mais além, Einstein, que também é questionado por Carvalho, fez outras imensas descobertas, que mudaram todo o mundo da física, as quais intitulou Teoria da Relatividade (Geral e Especial). Einstein é considerado uma das personalidades científicas mais admiráveis de todos os tempos. E também entendeu o sistema solar sob a ótica da teoria copernicana, porque a densidade do sol, sua massa, atrai para si os outros astros no seu raio gravitacional, ao menos, como a Terra atrai sua Lua.
Depois de Einstein, Stephen Hawking, em busca de uma Teoria de Tudo, escreveu o livro “Uma breve história do tempo” e, nele, explicou o processo de pesquisa e o método que levou Copérnico e os demais a adotarem o heliocentrismo, corroborando aquilo que é questionado por Carvalho.
Terei a humildade de dizer que eu não seria capaz de argumentar aqui com sabedoria tais teorias, pois não sou físico. Quero apenas salientar a atitude de Carvalho ao dizer que, embora não tenha adentrado tão profundamente a questão, todos esses cientistas renomados sejam eles embustes, tenham falsificado verdades. Que Einstein reinventou a física, como se fosse um cubo mágico de brincar, só porque não queria admitir o geocentrismo. E é aqui que vejo um primeiro indício de burrice humana, quando questionamos as coisas sem ter clareza das mesmas, sem entender seu método científico, por puro embuste e vaidade. Um “burro” tem opiniões até onde não sabe do que se trata.
A burrice vem de uma vaidade avassaladora, que crê estar no comodismo das crenças particulares as verdades universais, ignorando e tratando de lançar à lama as opiniões divergentes. A soberba é um tipo de burrice, quando, mediante ela, o intelecto parece entender-se iluminado e não precisar de estudo para fazer afirmações, nem de pensamentos inteligíveis.
Isso que me abstenho de citar a ideia recorrente aos seguidores do autodeclarado filósofo de que a terra seja plana, frente a todos os argumentos plausíveis e inteligíveis de que não seja! Mas que, para alguém que não entende confessadamente a relatividade einsteiniana ou a gravidade newtoniana e quer se opor a elas, se tornam absolutamente refutáveis. Não entendendo que se trate de paixão, a ciência, para estes estudiosos, não de vaidade. E poderia dizer ainda muito sobre a falência intelectual de Olavo de Carvalho, em relação a Paulo Freire e à educação, num geral, frente a Karl Marx, frente aos filósofos da USP, que repudia com todas as forças etc. Limito-me, no entanto, pois é hora de salientar outras agudas burrices.
Kim Kataguiri há poucos dias anunciou que Karl Marx (o perseguido Marx) havia se arrependido de seu pensamento comunista durante a Primeira Grande Guerra. Problema é que Marx morreu antes da Primeira Guerra Mundial e não poderia ter se arrependido de nada naquele momento, a não ser que fosse em outra vida. A não ser que Kataguiri tenha psicografado seu arrependimento. A burrice aqui não é menos nem mais grave que a de alguém que ignora todo o conhecimento construído cientificamente perante o seu ego e sua mera opinião. Porém é grave pela facilidade com que Kim poderia ter evitado tal gafe: era só entrar na Wikipedia e comparar as datas entre os acontecimentos, nada mais.
O fato é que a burrice pode ser também intencional, já que depreende uma distorção de fatos, em prol de enganar, dissimular uma realidade que se quer combater. Isso seria mau-caratismo, não burrice. Não é o caso de Kim, que ficou todo envergonhado com sua burrice e fez piada de si mesmo depois, como se desculpando, sem abandonar sua soberba. Mas é o caso do clã Bolsonaro.
Bolsonaro, novo presidente antigo do Brasil, ganhou as eleições com uma série de afirmações grotescas e falsas, aproveitando-se da ignorância da maior parte de seu público. Um ser ignóbil e mesquinho, mas que teve, junto de seus filhos, inteligência suficiente para atender ao que a população fascista atual queria. Sua rede de relações pessoais e virtuais levou ao ápice o seu embuste, porque atendeu à ignorância dos seus semelhantes. Todavia, a sua inteligência marqueteira se dava ao salientar a sua falência intelectual, sua falta de pudor e seu repúdio aos direitos humanos era capaz de igualá-lo ao seu público, que buscava alguém comum a ele próprio, que fosse capaz de comunicar-se com ele, como nos seus próprios “posts” de Facebook. Sobre suas burrices explícitas (como ao dizer “bagagem de dejeitos” em público) não precisam ser salientadas, pois estão aí. O que se tem que salientar é, afora os interessados em domínio classista, a subserviência intelectual de quem acreditou sem precedentes nas “mamadeiras de piroca”, nos “Kits Gay”, no “comunismo brasileiro” e em outras atrocidades. Um exemplo claro de burrice nos moldes que visualizamos aqui, pois partem de uma ignorância não questionada e de um comodismo vaidoso, visto que constantemente atacam intelectuais, valorizando a bruteza e destacando seus preconceitos e grosserias.
Mas das maiores burrices nenhuma se iguala ao armamento ideológico do novo governo, proposto talvez com o propósito de distrair-nos: Damares Alves. O problema não é a sua fé, nem sua falta de escrúpulos, nem sua imaginação esquizofrênica. Suas afirmações tocam a surrealidade e seu mundo é outro em relação ao vivenciado. Sua implicância com a sexualidade a leva a ser absurda, afirmando que na escola se ensina a fazer sexo, por exemplo, e mesmo bruxaria, com livros infantis satânicos. Saliente-se, entretanto, que é burrice do mais alto nível afirmar que tem mestrado e depois de questionada, pela falta do título, dizer que seu mestrado seja bíblico. Além de difundir a ideia de que na Holanda os pais masturbam os bebês, sexualizando-os desde o berço, sem ter fonte que o explicasse – ou teria alguma fonte da “deep web”?
Diferente do analfabetismo, da deficiência, da dificuldade de aprendizado, pode o leitor perceber que a burrice é uma disposição do espírito, como já disse, que vem primeiramente de uma grande preguiça acerca de pesquisar mesclada a uma vaidade orgulhosa, que leva o “burro” a entender-se como um ser iluminado, que não precisa de estudo para saber das coisas. Crê-se sábio, mas também não produz sabedoria, desde que essa propõe uma pessoa que, mesmo sem grande conhecimento científico, tenha capacidade de análise para conduzir pensamentos e lidar com o cotidiano, até mesmo com as maiores mazelas existenciais.
Sair falando o que se pensa é burrice. Eu próprio tenho minhas burrices e, mesmo tendo uma banca competentíssima na defesa de minha dissertação de mestrado, até hoje me questiono se não disse nenhuma besteira acerca de Nietzsche e de Fernando Pessoa, meus objetos de análise. Porém, se o fiz, não foi por afirmá-la da boca para fora, sem relacionar dados. Pois um descuido é perdoável, creio eu. Bem, quando não um “cidadões” num discurso de diretoria do MEC.