(IM)PUGNO ErGO SUM
Ando muito assustada com o atual estado de beligerância. Ao menor sinal de discordância, os ânimos se exaltam de tal maneira que as pessoas esquecem as regras básicas de civilidade. A todo instante vemos, nos comentários das redes sociais, as longas discussões a respeito de uma imagem ou opinião postada, vazadas em tom ofensivo e irônico. Raras são as situações em que o debate se dá de forma racional e respeitosa.
O interessante nisso tudo é que a “sanha querelandis”, muitas vezes, é uma artimanha de uma vaidade tamanha que necessita de qualquer coisa para chamar a atenção (capisce?). Ou seja, o que se revela como o motivo da discussão não é a defesa de uma ideia ou de uma ideologia, mas, sim, o prazer de vencer o debate, ainda que, para tanto, tenha que se desqualificar ou ridicularizar o oponente. Só que o tiro acaba saindo pela culatra e a exposição resulta extremamente negativa.
Pensando nisso foi que resolvi escrever este artigo. E o título, em latim, um trocadilho com a máxima pugno ergo sum (luto, logo existo), ressalta justamente o que quero destacar: O EGO como motivo das contendas.
Durante a fase de tormenta de ideias (e olhe que essa fase me deixa muito atormentada mesmo, pois não sei de onde aparecem tantas para uma cabecinha só), a lembrança de um livro me veio vívida: Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão - Em 38 Estratagemas (Dialética Erística), de Arthur Schopenhauer, cuja leitura preciso terminar.
Trata-se de um livro bastante útil, pois nos mostra os estratagemas empregados num debate para ganhá-lo a qualquer custo (per faz et nefas – por meios lícitos ou ilícitos). A utilidade, neste caso, é para que possamos identificá-los e evitá-los, pois seu uso revela, quase sempre, desonestidade intelectual, vaidade e grosseria. Selecionei alguns interessantes:
1) Provocação colérica
O argumento visa provocar a ira, sobretudo por meio de ofensa e ironia. Normalmente, esse estratagema é utilizado pela pessoa que está em desvantagem, a fim de desestabilizar o oponente.
2) Manipulação semântica
Atribuir outro significado a um termo com o intuito deliberado de fazer valer a opinião. Muito frequente nos debates políticos atuais, em que termos como fascistas, comunistas, feministas são empregados fora de seu contexto. Assim é que todo simpatizante de esquerda vira comunista; os de direita, fascista e todo movimento de mulheres vira feminista.
3) Mudança intencional do assunto (mutatio controversiae)
Mudar o debate para outros assuntos, tentando desviá-lo da principal questão. Assim como a provocação colérica, normalmente se dá pelo oponente em desvantagem.
4) Conclusões falsas e absurdas (reductio ad absurdum)
Chegar a conclusões absurdas e falsas dos argumentos do adversário, a fim de refutá-los. Exemplo:
A - Eu não acho que a justiça deveria condenar os furtos famélicos (para matar a fome)
B - Então você defende um Estado sem lei e sem justiça?
5) Descrédito do argumento pela pessoa (argumentum ad hominem)
Consiste em querer invalidar o argumento, desacreditando quem o profere. Por exemplo, chamar alguém de ateu ou feminista não prova que seus argumentos estão errados.
6) Incompetência irônica
Ocorre quando o adversário finge que não entende o argumento, declarando, com ironia “que não entendeu”, com o intuito de fazer com que seu oponente pareça um idiota, que não sabe organizar as ideias.
7) Discurso incompreensível
Objetiva confundir o adversário com uma profusão de palavras e frases sem sentido. Muito comum entre aqueles que se utilizam de uma retórica ornamental, repleta de termos abstratos, que se referem a tudo e a nada ao mesmo tempo. Quando falta o substrato, a forma vem pomposa e oca, tal como a figura de várias caixas de presentes, uma dentro da outra, encontrando-se a última vazia.
Sobre discursos obscuros, vale a pena trazer o pensamento de Schopenhauer, em seu livro A arte de escrever, cuja leitura também recomendo a todos: ,
Quando um pensamento correto desponta numa cabeça, ele se esforça em direção à claridade e logo a alcança, para em seguida o que foi claramente pensado encontrar com facilidade uma expressão adequada. O que uma pessoa é capaz de pensar sempre se deixa expressar em palavras claras e compreensíveis, sem ambiguidade. Aqueles que elaboram discursos difíceis, obscuros, ambíguos, com certeza, não sabem direito o que querem dizer, mas têm uma consciência nebulosa do assunto e lutam para chegar a formular um pensamento. No entanto, com frequência, essas pessoas querem esconder de si mesmas e dos outros o fato de que, na verdade, não têm nada a dizer. Querem dar a impressão de saber o que não sabem, de pensar o que não pensam, de dizer o que não dizem. Pois alguém que tem algo certo a dizer faria esforço para falar de modo obscuro?
8) Generalização imprópria
Consiste em ampliar o argumento do oponente, ou seja, interpretá-lo de forma extensiva, a fim de invalidá-lo.
A – Para combatermos a cultura do estupro, devemos acabar com o machismo.
B – Você está dizendo que todo machista é um estuprador?
9) Falsa proclamação de vitória
Muito utilizado por quem se aproveita da timidez ou da ignorância do adversário, para proclamar vitória, sem que tenha havido comprovação de sua tese. É o que se chama non causae ut causae (pressuposição de prova sem prova). Também se pode incluir, neste estratagema, a síndrome do pombo enxadrista, que se refere àquele que, num debate, age como um pombo jogando xadrez: estraga o jogo, defeca no tabuleiro e diz que ganhou o jogo.
10) Tomar a prova pela tese
Ocorre quando o oponente, não podendo refutar a tese, tenta sair vencedor do debate, considerando apenas a provas apresentada pelo seu adversário.
A - Existe vida após a morte, como comprovam os relatos de pessoas que passaram por experiências de quase-morte.
B – Se a pessoa quase morreu, ela não morreu verdadeiramente, assim não é correto afirmar que existe vida após a morte.
Esses são alguns dos estratagemas do livro de Schopenhauer. Sugiro sua leitura (vou terminar a minha), a fim de ficarmos atentos à nossa conduta diante de um caloroso debate, para não deixarmos o ego eclipsar a razão e guiar nossos argumentos. E, por fim, sempre é bom lembrar a célebre frase do saudoso Ferreira Gullar, para quem o importante era ser feliz e não ter razão.