A Ruptura da Confiança
(Por Charles Robin)
A ideologia liberal triunfante não corresponde apenas a um modelo econômico, o capitalismo globalizado, mas também a um conjunto de ideias de representação, a uma visão do homem e do mundo. Uma visão que se infiltra na nossa vida cotidiana e no nosso relacionamento com o outro para deixar suas digitais em todos os âmbitos da nossa existência.
Entre esses ramos da dominação, entre essas diferentes esferas da existência, que se vêem continuamente alienadas pela ideologia do mercado, há um fenômeno principal que eu gostaria de analisar e que eu chamarei de ‘a ruptura da confiança’.
Por que analisar um tal fenômeno? Cada um pode se dar conta, e basta andar por um shopping para constatá-lo, de que agora a nossa sociedade encoraja os indivíduos a agir apenas com o objetivo de satisfazer seus desejos e interesses privados, a somente buscar e perseguir, cada vez mais, seus ganhos pessoais, enquanto que a tradição tinha como ponto de honra valorizar a conduta gratuita e desinteressada, atitude herdada provavelmente da nossa herança cristã. Essa concepção da natureza humana como uma natureza que seria necessariamente egoísta, centrada em si mesma, centrada no indivíduo, essa concepção se propaga e se apresenta hoje em dia sob todas as formas: pelo culto da competitividade no mundo das empresas, pela reivindicação do direito específico para as minorias, pelo sucesso de métodos de desenvolvimento pessoal e outros ‘personal trainers’, uma vez que, a partir de agora, não se trata mais de se realizar existencialmente, mas, segundo a fórmula consagrada, de ‘administrar’ sua vida.
Podemos igualmente destacar a função das redes sociais, como o Facebook, onde o objetivo é apresentar a vitrine de si mesmo da forma mais atrativa, mais valorizante, uma espécie de ‘prateleira digital’ que visa a produzir estatísticas, a buscar freneticamente o ‘like’, sendo comparada à política de alcançar metas do mundo dos negócios.
Além disso, há também, dentro dessa mesma lógica, o desenvolvimento recente da famosa ‘selfie’ (que se pode traduzir por ‘autoretrato’). A ‘selfie’ é, portanto, uma foto tirada de si por si mesmo. Frequentemente se pode ler na legenda da ‘selfie’, desse destaque de si próprio, algo como: ‘ninguém tem o direito de me julgar’, e frases equivalentes. ‘Não me julgue porque fui eu mesmo que escolhi me expor deliberadamente em face do mundo atual’. Assim, pertinentemente, ela só funciona de forma espontânea e instantânea.
Esta é uma sociedade que faz do narcisismo um princípio vital e do egocentrismo uma regra de conduta e um novo imperativo categórico, uma sociedade que se esforça por reduzir o raio do altruísmo individual ao restrito perímetro da própria pessoa. Não se trata mais de se perguntar o que o outro ganhará com a minha ajuda, mas de saber o que eu ganharei ajudando o outro. Uma ação não faz sentido, dentro dessa ótica, se ela não desencadear um benefício, um ganho real, direto ou indireto, material ou simbólico.
Tal concepção não é absolutamente nova. Podemos citar, por exemplo, o filósofo inglês Jeremy Bentham, pensador do século dezoito, para quem o homem é um ser naturalmente egoísta, naturalmente autocentrado, que só age motivado por um interesse e a esperança de um prazer futuro, o que pode ser realmente válido para um certo número de pessoas, a maior parte ocupando as posições mais altas na hierarquia do poder. Por outro lado, o que há de novo é o grau de penetração e de aceitação dessa visão utilitarista na população sob o efeito da sua propagação pela ideologia do sistema, de forma que não é raro agora fazermos nascer a suspeita de alguns quando fazemos alguma ação sem ter nenhum interesse, sem buscar tirar algum benefício exceto o da gratificação pessoal, essa que não exige nenhuma forma de compensação.
Em um mundo onde tudo se paga em ‘cash’ ou a crédito... e eu lembro aqui que a palavra ‘crédito’ significa etimologicamente ‘crer’, ‘credor’ em Latim, quer dizer, alguém que tem confiança em quem não pode pagar, que ‘acredita’ na capacidade que a pessoa tem de lhe reembolsar. Em outras palavras, o crédito é a confiança que fazemos no outro, e é por essa confiança que podemos ‘acreditar’ no outro. Acreditar é, portanto, dar ao outro o crédito de suas intenções. O crédito é a crença numa lealdade não verificável e, portanto, a ausência de controle da parte daquele que tem confiança. A Confiança, ‘fiducia’ em Latim, deu origem à palavra ‘fidelidade’, pois a noção de fidelidade não é reservada apenas ao domínio conjugal, mas se aplica ao domínio do valor em geral. Podemos ser fiéis na amizade, numa promessa, a um ideal, a uma pátria. Fazer confiança é assim aceitar dar uma parte essencial de si ao outro, de se desprender de uma parte de si para confiá-la a outrem. É se fazer a experiência de uma espécie de fé imanente e gratuita, uma fé sem divindade, mas ainda assim uma fé, pois, nos dois casos, se trata de se entregar ao desconhecido.
Após o surgimento da Tragédia Grega, a traição passou ser o crime moral por excelência. Assim, você compreenderá facilmente em que medida a ‘ruptura da confiança’ vai permitir a instalação, na nossa sociedade, de um tipo de filosofia da suspeita, de uma desconfiança generalizada, devendo o outro ser sempre suspeito de jogar por seus interesses e não pelos interesses da equipe. Assim se espera, por essa propaganda que não revela seu nome, implantada no espírito dos indivíduos, a ideia de que, na dúvida, é melhor se abster de contar com o outro, se abster de ter confiança nos outros, favorecendo assim o isolamento egocêntrico do indivíduo e validando, dessa forma, a posição liberal sob o egoísmo fundamental do ser humano.
Essa representação liberal do ser humano é evidentemente contrariada pela experiência cotidiana, uma vez que, muito felizmente, temos motivo para ter confiança em quase todas as pessoas que nos cercam. Mas é uma representação que tende a se tornar a filosofia inconsciente do conjunto de nossos atos, uma filosofia do cálculo de interesses, uma filosofia da gestão de si mesmo, uma filosofia da imagem que tende a impregnar nossos atos dessa dolorosa interrogação: o que tenho a ganhar com isso? Uma busca do interesse privado apresentado como o próprio sentido da ideia de independência, a independência significando precisamente o fato de não se depender de nada nem de ninguém. Uma independência reduzida, por assim dizer, ao autismo, ao fechamento em si mesmo, e à fobia de dever favor a alguém, transposição à esfera moral de regras da Economia, onde a noção de ‘gratuito’ e ‘dado’ aparece como desprovida de sentido e fundamento. Alguém que deve favor é alguém ligado ao outro por um engajamento implícito e durável.
Por essa incapacidade do indivíduo liberal de adotar a posição de ‘recebedor’, se manifesta, na realidade, sua impossibilidade de se colocar na posição de ‘doador’, segundo o ciclo definido por Marcel Mauss, que ordena toda a sociedade pela tripla obrigação de dar, receber e devolver, uma antropologia da doação que consiste no exato oposto da hipótese egoísta do Liberalismo, resumida de forma sarcástica pela palavra de ordem tripla do Mercado: pedir-receber-tomar. Eis o segredo!
A ruptura da confiança é assim atualizada a partir do momento em que as regras tácitas, quer dizer, não-formuladas, do ‘gratuito’ e do ‘doado’ são vistas como se tratando de uma dissimulação de intenções reais, forçosamente em conexão com a busca de um interesse subjacente. O esquema capitalista se encontra assim reproduzido até mesmo no interior da mente, submetendo a ação dos indivíduos à lei única da racionalidade matemática.
A multiplicação das reivindicações identitárias e comunitárias dos dias atuais apenas confirma, além de acentuá-la, essa tentativa global de atomização de indivíduos. Cada um é, a partir de então, chamado a se definir por aquilo que o opõe aos outros, por aquilo que o diferencia do outro, distingue-o do outro. Trata-se da procura incessante de distinção na cultura liberal do narcisismo, uma cultura fundada sobre o culto de um ‘eu’ único e inalienável, inalienável no sentido literal do termo, que não pode se tornar outro, que não pode sair de si, se desprender de uma parte de si para confiá-la a outrem. A divisão de si pela confiança é assim vivida como uma perda de autonomia, resultando potencialmente em todo tipo de dependência e de submissão. Uma competição econômica iniciada até mesmo no seio da vida em casal, onde a prioridade não é construir uma habitação comum, mas celebrar a coabitação no novo ideal antropológico, uma coabitação onde os dois nomes aparecem no contrato e na caixa de correios, e onde, em caso de ruptura do contrato, cada um recupera sua parte do acordo e continua seu caminho sem mais preocupações. ‘Coabitação’ (‘colocation’ no Francês, no sentido de partilhar uma moradia alugada) parece ser um termo bem escolhido, uma locação recíproca, uma locação temporária, tal qual se faz ao alugar um dvd para se divertir, um aluguel ao invés de uma aquisição, garantia de independência e de liberdade, lei caprichosa do interesse e do desejo, não podendo admitir a compra de uma residência, a obrigação inalterável. A coabitação com ar de mosaico, de justaposição de individualidades, cada um em seu canto, em seu quarto, resguardando bem sua vida privada, para a qual a noção de moradia é completamente estrangeira.
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Texto transcrito do video de Charles Robin:
https://www.youtube.com/watch?v=rMWItSkA3wg&t=601s