LIMPE SUA VIDRAÇA!

A pior consequência do preconceito não é a distorção do que o outro é,

mas a negação do que somos nós.

Claudio Chaves

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A maioria absoluta dos brasileiros jamais trocaria a ampla liberdade democrática, a civilidade e a solidariedade de nosso País por uma vida de privações, controle e todo tipo de restrição imaginável imposta por um governo tirano como o de Cuba.

Se propusermos aos cubanos – e a qualquer outro povo – esse teorema, a resolução da maioria absoluta será exatamente a mesma e, basicamente, pela mesma razão: a compreensão que cada povo tem de si (suas potencialidades e limitações) confrontada com a realidade de outrem.

Como diz Leonardo Boff, “cada um vê o mundo com os olhos que tem e de onde estão firmados os pés”. Parafraseando Maquiavel, ninguém enxerga melhor o vale do que quem está na montanha; e ninguém tem visão melhor da montanha do que quem está no vale. Em outras palavras, sempre achamos que de onde estamos nossa visão é mais privilegiada do que a dos demais.

Todos nós enquanto sociedade nada mais somos do que o resultado de nossa própria história. Todos iremos nos ver e ver o resto do mundo a partir dos óculos que ela nos emprestar. Assim sendo, para nós brasileiros, conceitos como: independência democracia, liberdade, censura, solidariedade, desenvolvimento, justiça, propriedade, governo, estado, sociedade, família, religião, etc. jamais se equipararão (pelo menos enquanto a nossa história for “só nossa”) às interpretações dos mesmos temas vindas de um sueco, britânico, canadense, chinês, árabe, russo, francês, norte-americano e, muito menos, de um cubano.

Grande parte do que, nesse momento, se veicula no Brasil a respeito da Ilha Caribenha mais famosa do mundo são inverdades ou verdades transmitidas de formas propositalmente torcidas, a partir de uma ótica exclusivamente neoliberal hegemônica e, portanto, tendenciosa, unilateralista, manipuladora e profundamente preconceituosa e excludente.

O que um brasileiro comum sabe e, principalmente, vive e pratica de liberdade para criticar o comportamento de um cubano a esse respeito?

“Ah, mas, lá, o Governo fica com 70% do salário dos médicos! Isso, mais do que injusto, é trabalho escravo! É dinheiro brasileiro pra financiar a ditadura comunista cubana”, exclamam os autointitulados democratas e patriotas brasileiros.

Dado a brevidade da intervenção, não entrarei no mérito (nem perifericamente) de questões relacionadas à soberania de cada Estado.

Independência e soberania nacional à parte, o que, de fato, me interessa ressaltar é a cultura, a visão, a compreensão de mundo dos dois povos: cubanos e brasileiros. Isso, dentro do contexto em curso, é o mais relevante; nisso, muito mais do que em chavões e clichês inventados por pessoas oportunistas e interesseiras com propósitos meramente manipuladores e monopolizadores, deveríamos está interessados.

Cuba nunca foi, não é, jamais será um inimigo, uma ameaça ou um empecilho para o Brasil, em qualquer aspecto ou dimensão. Essa tática é antiga, bizarra, porém sempre muito eficaz, principalmente entre populações com pouca cultura científica e historicamente dominadas por dogmas e crenças metafísicas (como é o nosso caso): inventar e demonizar inimigos (pessoas, nações, ideologias, crenças, etc.) e culpá-los por problemas que cabem exclusivamente ao próprio acusador resolver.

Na prática, é como, sofrendo eu de tuberculose, me convencesse de que tudo se resolverá se tão somente eu convencer todos ao meu redor de que o verdadeiro e ameaçador problema de saúde são os casos de gripe diagnosticados em alguns dos meus pares. Se eu conseguir desviar a atenção da maioria para os que estão com gripe, quase ninguém vai se importar, muito menos se sentir ameaçado por conviver comigo, que sofro de tuberculose. Pelo contrário, os gripados serão considerados potencial ameaça, e eu, o salvador da pátria que, com meu alerta, poupei a vida dos demais – estratégia perfeita!

Ratificando, cada povo enxerga, pensa e age conforme sua história. Um judeu típico, por exemplo, pode rodear o mundo inteiro, morar e constituir família nos cinco continentes, jamais, porém, ele deixará de se sentir um filho de Abraão, um filho da promessa, um natural de Israel. Isso é o que a história e a cultura têm o poder de fazer conosco.

Dizer que um cubano que não deserta, não acusa seu governo de tirania, que trabalha voluntariamente como escravo pra sustentar ditadura ou que não sabe o que é liberdade ou democracia, mais do que equívoco analítico, é uma grosseria, profunda descortesia, falta de empatia e forte preconceito.

Quem dera fosse tão simples assim!

Uma pequena comparação da história dos dois países revela, com clareza meridional, o abismo que separa tais povos quando o assunto é impressão e apreensão conceitual de termos como independência, soberania, liberdade e sociedade.

A nossa compreensão de independência e liberdade, por exemplo, nada tem a ver com conquista popular. Pensar e vocalizar esses termos nos remete não a conquistas, mas a presentes. Nós não entendemos como um norte-americano, um israelense ou um cubano o sentido e o valor dessas palavras. Da mesma forma, a compreensão deles sobre governo, estado e sociedade é completamente diferente, quando não oposta a nossa.

Para um cubano, por exemplo, a sociedade privada – que pra nós é tudo – não tem a menor relevância. Pra ele, pouco importa quem é o dono (se ele, o Estado, o partido, a sociedade, a Igreja...) da propriedade; importa que ela produza e que todos possam usufruir na mesma medida.

O Estado, em Cuba, de fato, é o dono de tudo, inclusive das pessoas, digamos. E daí?! No Brasil, não é o Estado, mas é o mercado. Onde está a grande vantagem?! Para o cubano, o Estado não é um inimigo – ao qual eu devo temer ou lesar sempre que possível –, nem apenas um aliado quando a aliança lhe for conveniente. Não; pra ele, o Estado é tudo. Estado e sociedade, pra ele, se confundem, são a mesma coisa: todos fazem o Estado, e o Estado cuida de todos.

O que para nós – que quase sequer imaginamos existir outro modelo possível de sociedade senão a do capital neoliberal da exploração excedente do homem pelo homem (incrustada em nós de corpo e alma) – pode parecer ingenuidade, alienação ou burrice, pra eles, no entanto, é um ideal de sociedade, uma alternativa ao modelo rival que, por não conseguir superar suas profundas contradições (que, com o passar do tempo, só recrudescem), continua a promover guerras regionais e conflitos intercontinentais abissais, como a recente, vexatória e comovente onda de migração em grande parte do mundo, incluindo as Américas.

Conta a lenda que certa mulher começou a implicar com a vizinha, que era tão desmazelada que sequer lavava bem as próprias calcinhas. Tal constatação era possível graças a visão que a mulher tinha do varal de roupas da vizinha através dos vidros da própria janela.

Certo dia, ainda cedo, para sua grata surpresa, ao olhar pela bendita vidraça, que alegria: as calcinhas da vizinha estavam impecavelmente limpas, quase brilhantes. “Finalmente criou vergonha! Teve coragem de lavar pelo menos os trapos de baixo!”, exclamou a indignada senhora.

“Fui eu”!, respondeu o marido.

“O que?!”, pergunta, quase infartando, a mulher. “Agora, além de ficar defendendo o desmazelo dessa vadia, você resolveu também lavar os panos de bunda dela?!”

“Sim, mulher”, completa o homem. “Fui eu quem limpou os vidros da janela...estavam embaçados”.

Moral: Moral: antes de demonizar e/ou menosprezar a compreensão de mundo do outro, avalie suas próprias convicções e ações...limpe sua vidraça!

Em lugar de condenação, insinuações preconceituosas e deboches, penso que respeito, um pouco de humildade e empatia em relação aos nossos irmãos e vizinhos cubanos, suas concepções, lutas e sonhos, não nos custaria tão caro comparado ao benefício que nos legaria.