A mentira da meritocracia
Vamos fazer uma viagem no tempo e pensar na situação das mulheres no passado. Por que foram tão poucas as que se destacaram? Eram as mulheres daqueles tempos menos capazes ? Não, era por falta de oportunidade, já que as mulheres praticamente não tinham direitos. E as poucas que se destacaram costumavam vir de famílias abastadas ou aristocráticas. Elizabeth I, Catarina a Grande e Lucrécia Bórgia se destacaram porque os meios em que viviam permitiu que desenvolvessem suas qualidades.
Do mesmo modo que poucas mulheres ocuparam posições de destaque devido ao fato de praticamente não serem dadas chances às mulheres no passado, temos de falar em uma ilusão muito propagada na nossa sociedade atual: a da meritocracia. Quando se prega que basta uma pessoa se esforçar para vencer, geralmente se esquece que não há igualdade de condições neste mundo no qual vivemos.
Podemos dizer que tantas pessoas que vão fazer os exames do Enem ou concursos públicos estão em igualdade de condições? Comparemos um estudante que veio da favela, estudou em escolas públicas de má qualidade – e sabemos que as escolas públicas no Brasil enfrentam problemas como violência, desinteresse por parte dos alunos e evasão escolar – e muitas vezes trabalhava de dia e estudava à noite (jornada dupla) com um de classe média alta que sempre estudou nas melhores escolas e nunca precisou trabalhar, tendo, portanto, todo o tempo do mundo para se dedicar às suas atividades acadêmicas. Pode-se falar em meritocracia? Quem tem mais chances de vencer? E pode se dizer acerca do que não passou nos exames citados acima que ele não teve êxito por não ter se esforçado o suficiente ou ser menos capaz?
A mentira da meritocracia só serve para mascarar uma verdade cruel: a de que vivemos num sistema injusto, que não permite crescimento igual para todos e impede muitos de se desenvolverem e se realizarem nos níveis social, pessoal e profissional.
O ambiente influi grandemente no que podemos nos tornar. Uma criança que nasça em área miserável pode ser muito inteligente mas, a não ser que haja ajuda externa, com bastante estímulo, será bastante difícil que um dia consiga ser um profissional de sucesso. Várias pessoas oriundas desses lugares que conseguiram vencer a miséria e se formar fazem questão de enfatizar que, se não houvessem sido ajudadas, não teriam vencido.
Podemos citar dois bons exemplos de como é necessário que uma pessoa tenha a seu favor várias circunstâncias favoráveis para que tenha sucesso: o nadador americano Michael Phelps e o ginasta japonês Ken Uchimura, dois medalhistas nas suas categorias. Eles teriam conseguido se desenvolver treinando sozinhos, sem que um bom técnico os orientasse, dizendo quais os pontos fracos que poderiam melhorar e os pontos fortes que deveriam ser explorados? Não. Nem o melhor atleta do mundo se faria sozinho. Por mais talentoso e determinado que alguém seja, ele precisa de ajuda para maximizar seu desempenho. Além do técnico, precisará de um nutricionista, vestimenta e talvez até psicólogo.
Pelo que expomos ao falar dos dois atletas, podemos ver que a meritocracia é inconsistente. Não se está dizendo que quem venceu não mereceu. Temos de fazer justiça a quem treinou duro ou estudou para alcançar seu objetivo. O que se está dizendo é que não podemos dizer que os que não foram bem-sucedidos fracassaram por falta de esforço e/ou capacidade. Devemos ver que tudo é muito mais complexo e aponta para uma série de problemas sociais.
Porém, não há interesse por parte de quem detém o poder (principalmente econômico) de que se discuta acerca dos problemas que impedem tanta gente de se realizar neste Brasil. E um recurso muito usado pela mídia – que nunca é imparcial- é o de, através de jornais ou da TV, contar as histórias de pessoas que venceram pelo “próprio esforço”. Sempre se enfatiza que essas pessoas vieram de lugares miseráveis, passaram fome ou enfrentaram problemas como violência doméstica. Se percebermos bem, isso corresponde ao mito do self made man, de origem norte-americana, que valoriza o sucesso pessoal. São inúmeros os filmes americanos (como A luta pela esperança e Rocky um lutador), que celebram histórias de pessoas que enfrentaram todas as adversidades, tinham tudo para dar errado e venceram através da perseverança.
A mensagem que se passa ao se contar tais histórias é a de que qualquer pessoa, querendo, vencerá. Entretanto, quem se esforçou e não venceu pode se sentir mal ao assistir ou ler tais histórias. Implicitamente, elas querem dizer que cada pessoa é a única responsável por seu sucesso e fracasso, minimizando fatores como concentração de renda, falta de oportunidades de emprego, educação de má qualidade, entre outros.
É necessário ver que o nosso Brasil precisa passar por reformas estruturais profundas. Muitas pessoas cheias de potencial e vontade de trabalhar são tolhidas por um sistema que não dá igualdade de condições para todos. Precisamos entender que dizer que alguém não venceu por falta de esforço ou de capacidade é simplificar um problema social sério.