VESTÍGIOS DO DIA (2ª PARTE)
            Continuando o estudo sobre o desenrolar dos acontecimentos em torno do Lord Darlington, veremos agora o desenvolvimento da narrativa nazista apresentada por novos convidados que ele recebe, com o apoio sempre constante do mordomo Sr. Stevens.
            - Os senhores falam de judeus, ciganos, negros e assim por diante, mas é preciso considerar as leis raciais dos fascistas como uma medida salutar que vem tarde, em minha opinião.
            - Imagine tentar impor uma lei dessas aqui...
            - Meu caro Lord, não se dirige um país sem um sistema penal. Aqui chamamos de prisão. Lá, eles chamam de campo de concentração. Qual a diferença? Stevens, há algum tipo de carne nesta sopa?
            - Não, acho que é caldo de cogumelo. Com cogumelos, cebola, aipo. Nada de carne. Preparada com água fria e xerez.
            - Soube que tem um trabalhista lhe dando apoio político.
            - A Alemanha se livrou dessa história de sindicato. Acreditem, nenhum trabalhador faz greve na Alemanha. E o governo mantém todos na linha.
            - Não é à toa que este país está se afundando. Está doente por dentro. Ah, Stevens, sabe se os croutons têm manteiga?
            - Receio que sim, senhor.
            Muda o cenário para o aposento do mordomo, Sr. Stevens, onde ele recebe o chefe da segurança dos convidados do Lord Darlington, Sr. Benn.
            - Deixou esse lugar bem aconchegante. Parece que é um homem satisfeito, Sr. Stevens.
            - Na minha filosofia, Sr. Benn, um homem não pode se dar por satisfeito até ter feito tudo que puder para servir seu patrão. Isso pressupõe que o patrão seja uma pessoa superior, não só em hierarquia ou riqueza, mas sim em envergadura moral.
            - Na sua opinião, o que está havendo lá em cima tem “envergadura moral”? Eu gostaria de ter tanta certeza, mas não tenho. Eu tenho ouvido coisas bem suspeitas, Sr. Stevens.
            - Eu não ouço nada, Sr. Benn. Ouça! Emocionante, não?... (se refere ao disco que está sendo reproduzido na vitrola). Ouvir as conversas dos senhores me desconcentraria do trabalho.
            Podemos observar que o patrão do Sr. Stevens desenvolve uma conversa com os seus visitantes, que apresentam determinada narrativa, mas o mordomo não se envolve na conversa, tem plena confiança no senso crítico e ético para colocar sobre ele qualquer dúvida. Não imagina que ele possa estar cometendo algum erro ao aceitar uma narrativa que vá de encontro aos seus princípios. Afinal, a sua filosofia é fazer tudo para satisfazer o seu patrão a quem considera de grande envergadura moral e incapaz de cometer erros. Está despreocupado quanto a isso.
            Processo parecido pode ter acontecido no Brasil. O presidente Lula assumiu a chefia da nação com uma narrativa de honestidade, de eliminar a pobreza, e distribuiu benesses e empregos, dentro e fora da realidade financeira do país. Os beneficiados passaram a acreditar que essa narrativa é correta, que o seu “patrão e pai” é uma pessoa de grande envergadura moral, que qualquer sombra de dúvida não pode ser considerada. Os diversos escândalos que surgiram, fatos dentro de uma realidade inconteste, serviram para rejeitar essa narrativa como falsa, como aconteceu comigo e tantos outros, que não deixaram o seu nível de coerência ser contaminado. Mas, as outras pessoas que permaneceram querendo manter essa narrativa, que são pessoas de bem, de boa estatura moral, porque não abandonaram a narrativa e deixaram dentro dela apenas os criminosos e seus asseclas?
            Mas iremos continuar no estudo dessa obra literária para afinar ainda mais a nossa capacidade de reflexão, e até entender os nossos amigos que estão enredados nessa teia, como uma presa da aranha.