A violência no Rio: um projeto de Estado burguês.

A violência no Rio: um projeto de Estado burguês.

Este texto tem o intuito de demonstrar que o problema social de violência nas favelas do Rio, não pode ser compreendido e, com isso, nem resolvido, sem que se debruce em sua causa mais latente: o problema das próprias favelas.

A violência no Rio não pode, do dia para a noite, ser vencida. Ela é o efeito de uma causa histórica que nos remonta aos períodos de pós-abolição da escravidão, no fim do século XIX, passa pelos inúmeros programas estatais que, ao longo dos séculos XX e XXI, nunca se propuseram à resolvê-la, mas torná-la um campo político oportunista, que utiliza a violência, para fomentar promessas, ganhar eleições e lucrar com as milícias.

Em busca de legitimar o que até aqui dizemos, seguiremos o texto traçando uma recapitulação histórica do surgimento das favelas, através do livro organizado por Alba Zaluar e Marcos Altivo - Um século de Favela (2006).

Deste modo, com esse arcabouço pesquisado, interpretaremos a última medida estatal: a Intervenção Militar, que se diz urgentemente necessária, mas faz parte do interesse das milícias em obter territórios e de Michel Temer em conquistar votos.

Vejamos a historicidade dessa disputa territorial pela favela:

A limpeza da cidade: Remoção das favelas. (DE 1900 ATÉ 1930)

As primeiras medidas estatais na favela, foi início no século XX, guiada por uma visão higienista(1), do qual, as favelas eram tratadas como os lugares podres, dos quais, deveriam ser removidas das cidades.

Tal medida vinculava-se ao interesse de urbanizar a cidade carioca. Em 1927, por exemplo, a favela entra pela primeira vez no plano oficial do Estado, guiado pelo urbanista francês Alfred Agache, que tinha como proposta: a transferência da população para outras áreas afastadas da, até então, capital federal do Brasil.

Nessa proposta era nítido o interesse estatal de dividir a cidade, como criticou enfaticamente, Lima Barreto:

“Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será europeia e a outra indígena”.(2)

Porém, os planos de urbanização e limpeza da cidade não saíram do papel, foram idealizado nos anos seguintes até o governo de Getúlio Vargas. E apesar de Vargas, ao contrário de seus antecessores, ter executado seus projetos, ele ainda carregava como herança a visão higienista e civilizadora das favelas, uma vez que, o Código de Obras de 1937, interpretava as favelas como “aberrações que não podiam constar no mapa da cidade.”(3)

Casa é para quem tem carteira assinada e só! (O Período de Vargas)

Na Era Vargas, estabeleceu-se uma “cidadania regulada”(4), onde as políticas sociais eram exclusivas para trabalhadores com carteira assinada, o que não contemplava, por sua vez, toda a população. Além do mais, a restrição dos analfabetos ao voto fazia com que o problema favela não vislumbra-se maiores pretensões políticas.

Ainda sim, foi nesse período que criou-se o primeiro plano habitacional, destinado aos trabalhadores formais das favelas. O plano pretendia remover os moradores das favelas e transferi-los para os parques proletários. Foram construídos nos anos de 1941 a 1943, três parques proletários, na Gávea, no Leblon e no Caju, que transferiram por volta de 4 mil pessoas, sob a promessa de que voltariam aos seus lugares de origem após serem urbanizados. Fato que não ocorreu.

Com o abandono, o povo se virou...

Como o autoritarismo e a precária infraestrutura dos parques não atraiam os cariocas do morro, os moradores se organizaram em associações para resistir aos planos de remoção.

Em 1945, surgiram as primeiras associações nos morros do Pavão/Pavãozinho, Cantagalo e Babilônia, foi a primeira vez em que os moradores das favelas assumiram de fato o posto de atores políticos.

E somente com essa demonstração da capacidade organizativa e autônoma que as favelas atraíram maior atenção estatal, afinal, a organização dos moradores assustavam os burgueses, e esse medo era traduzido no slogan: “é necessário subir o morro antes que os comunistas desçam.”(5).

Com esse temor de um possível levante proletário e como alternativa à política populista de Vargas, que não era eficaz nesse sentido, o Estado utilizou a Igreja, sob uma espécie de retorno das missões jesuíticas do século XVI, para controlá-los:

As ações da Igreja e as reações da Favela

De 1947 a 1954, a igreja católica atuou em 34 favelas implantando serviços básicos.

Porém, essas ações não foram suficientes para inibir maiores articulações entre os moradores, demonstrando que o discurso civilizatório-religioso não conseguia conter a presença dos moradores na arena política.

A partir dos anos 1950, concretizava-se uma relação mais estreita entre a favela e a política, graças ao surgimento de lideranças orgânicas das favelas.

Toda essa articulação política em ascensão na favela, exigiu novas medidas do Estado e da Igreja para contê-la. Medidas essas, que novamente não conseguiram impedir maior participação política da favela, houve até a criação da Coligação dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal, que reivindicava melhores condições de vida aos moradores, ressignificando a categoria de favelado (antes identificado de modo marginalizado) como uma identidade coletiva dos excluídos, possibilitando sua luta por direitos sociais e políticos.

A resposta do Estado: Remover para desarticular

Como resposta, o Estado procurou se aproximar das favelas e até estimular a formação de associações de moradores, criando na época 75 associações(6), das quais, embora no discurso: que objetivava permitir maior independência dos moradores para tratar com o Estado; tinha como ação concreta: o completo oposto, pois, o que prevaleceu foi a subordinação estatal sobre os moradores.

Assim, o que realmente desarticulou a organização política que surgia nas favelas foram as medidas estatais de remoção. No governo de Carlos Lacerda, a partir de 1963, foram construídos alguns conjuntos habitacionais, destinados a receber os moradores que seriam removidos da zona sul do Rio. Com um financiamento estadunidense, foram construídos a Cidade de Deus e as vilas Kennedy, Aliança e Esperança. O objetivo, evidentemente, era de corroer a sociabilidade e a articulação política que haviam sido desenvolvidas nas favelas.

O autoritarismo de 64 e a resistência da favela

No período militar, mantendo a visão higienista que tratava a favela como “um espaço deformado” com “população alienada”, o Estado intervia com maior autoritarismo, criando a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio - o Chisam, que pretendia moralizar as famílias faveladas, de modo que, os educassem “não somente no modo de habitar, mas também no modo de pensar e viver (Valla, 1984:17). Porém, o órgão se mantia na prática como removedor de favelas. Contribuindo com objetivos imobiliários e políticos, o plano de remoção ganhou forte impulso na ditadura.

Mas as remoções autoritária dos militares chocou-se com as organizações de resistência dos trabalhadores. Eles resistiram, inicialmente, até 1967, quando os militares expurgaram a (FAFEG).

Foi essa interrupção da favela na vida política que, impedindo a formação de organizações política entre os favelados, destruiu: "os vínculos horizontais que vinham sendo elaborados desde a década de 1950 e, ao subverter a natureza representativa da associação de moradores, tornando-as porta vozes do Estado, junto às favelas, acab[ou] impedindo também a democratização." (BURGOS, ZALUAR, 2006.)

Porém, mesmo nos anos em que a crueldade totalitária escancarou-se, com torturas e assassinatos de lideranças orgânicas das favelas, as organizações políticas mantiveram-se, possibilitando ainda no período militar, a permanência de 52 favelas em bairros burgueses das classes médias e altas da cidade.

Feridas do Autoritarismo: Ressentimento e Clientelismo

Apesar desta voz de revolta manter-se, todo o autoritarismo militar, durante a ditadura, desencadearia nos moradores dois afetos, que passariam a guiar os primeiros momentos de redemocratização no país. O terrorismo da remoção desencadeou nas favelas o ressentimento dos moradores para com as instâncias do poder; e as transformou em redes de clientelismo(6).

Com a abertura do regime político, esse ressentimento da favela expressou-se nas urnas, com a vitória de Brizola, nas eleições 1982, sobre o candidato dos militares, Moreira Franco (atual Ministro de Minas e Energia do Brasil).

Brizola, diferentemente dos seus antecessores que preferiam a remoção, guiou-se para as favelas com planos de urbanização, realizando obras de infraestrutura como saneamento básico, coleta de lixo e iluminação pública; e o programa Cada Família um Lote da Secretaria Estadual do Trabalho e da Habitação, que pautava-se em repassar a “preços simbólicos os lotes a seus moradores, que se tornarão seus proprietários definitivos com todos os direitos legais deste fato”.(CAVALLIERI, 1986).

Ainda sim, o intuito de urbanizar as favelas do Rio não carecia de interesse paralelos. Optar pela urbanização ao invés da remoção permitiu que o Estado, por meio de Brizola, estreitasse a relação com a favela, obtendo maior controle estatal sobre formação de organizações políticas entre os moradores.

E mesmo que Brizola tenha proporcionado, de modo inédito, meras “brisas de cidadania” aos sufocados moradores, ao agir cooptando lideranças da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (a FAFEG), deixou de estimular a formação de organizações políticas entre os moradores, para fomentar um terreno oportunista de clientelismo, o que por sua vez, desencadeou no imaginário coletivo dos moradores a ideia de que todo exercício do poder público caberia exclusivamente aos agentes do Estado. Gerou-se ali, uma passividade política acomodada em redes de clientelismo legal através de candidatos “amigos da comunidade” ou, ilegal, sob o comando do tráfico e das milícias.

Na democratização, a favela que antes era rejeitada, como uma sujeira que deveria ser limpada da cidade, tornou-se o território da disputa entre três poderes: o Estado; o tráfico; e as milícias. Todos possuem o interesse de dominar economicamente a favela e extrair de seus moradores os maiores lucros. Todos também legitimam-se pela força.

Mas, se o interesse do Estado, nos anos em que se seguem com o governo de Saturino, 1986 e Marcello Alencar, 1992, era o de utilizar as favelas como “trampolim político”, através da concretização de obras inacabadas de governos antecessores, para garantir vitórias eleitorais, quais são os interesses da milícia e do tráfico na favelas?

Para isso, contextualizamos suas formações:

A formação das facções e das milícias

Entre os anos 80 e 70, formava-se o poder do crime organizado no Rio, nas penitenciárias cariocas, as facções surgiram como resposta a precária condição do sistema carcerário. Com o passar do tempo, obtendo respeito entre os presidiários e estabelecendo domínio de territórios nos presídios, esse poder começou a ser disputado com a formação de novas facções.

Através da monografia de Claudio Armando Ferraz - Crime organizado: diagnóstico e mecanismo de combate (2012), descreveremos a formação das facções criminosas e das milícias que se consolidaram no Rio.

Comando Vermelho

Criado entre 1969 e 1975, no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, e sob o nome de Falange Vermelha, nascia o Comando Vermelho. Seu objetivo inicial era enfrentar as condições sub-humanas impostas tanto pelo sistema carcerário quanto por outros presos.

O caráter organizativo que o CV possui, especula-se ser oriundo de seu surgimento, que foi a partir de possíveis vínculos entre presos comuns e presos políticos da época:

“Os internos da Galeria B, presos comuns e revolucionários,

passaram a partilhar experiências, tendo os presos comuns adquirido, através de

longos encontros, o modus operandi das guerrilhas revolucionárias.”(7)

Para espalhar seu poder nos presídios cariocas, o CV, sustentou-se como uma organização interna dos presos que agia contra os abusos das autoridades carcerárias e estabeleceu, na sociabilidade entre eles, a proibição de ataques, roubos ou violência física e sexual nos presídios. Outra medida para sustentar a facção, foi a criação de um fundo financeiro, alimentado por atividades criminosas dos que estavam em liberdade, uma espécie de dízimo.

O dinheiro arrecadado servia “não só para financiar novas tentativas de fuga, mas igualmente para amenizar as duras condições de vida dos presos, reforçando a autoridade e o respeito do CV no seio da massa carcerária.”(8)

Nos anos 80, os presos foragidos concretizaram os ensinamentos obtido nos presídios, “organizando e praticando numerosos assaltos a instituições bancárias, algumas empresas e joalherias.”(9). Porém, como os assaltos a banco eram extremamente arriscados, muitos foram recapturados ou mortos.

Embora essa primeira investida para fora dos presídios, do CV, tenha sido derrotada, a medida do Estado em busca de fragmentar a facção, separando os presos por presidio, mais contribuiu para espalhar e fortalecer o domínio do CV nos presídios cariocas.

“Em vez de isolar os líderes do CV de volta na Ilha Grande, entendeu-se que

seria mais prudente separar a comissão dirigente e colocá-los em diversos presídios,

de modo a desintegrar a organização.” (10)

Esse erro desastroso do Estado contribuiu para que o CV enraizasse e estendesse seu poder por vários presídios. A conquista de poder nos presídios, inevitavelmente, gerou disputas que culminaram na formação de novas facções, como exemplo o Terceiro Comando (TC).

Terceiro Comando

Surgida como oposição ao CV, o Terceiro Comando, nasceu nos anos 90, contando inclusive com policiais que passaram para o lado do crime. (11)

Pouco se sabe realmente como se deu sua formação.

Terceiro Comando Puro

O que sabe-se do TC é que foi a partir de uma dissidência da facção, que criou-se outra facção o TCP - Terceiro Comando Puro, oriundo do Complexo da Maré, surgiu em 2002 como a menor facção. Mas quando Fernandinho Beira-Mar “liderou uma revolta no presídio Bangu 1 matando alguns rivais, este rompeu sua aliança com a ADA, e os traficantes do então TC ou passaram para o lado da ADA, ou migraram para o TCP.” (12)

Amigo dos Amigos

Composta por ex-militares, policiais expulsos e traficantes, a facção surgiu também dos presídios cariocas, como um braço direito do Terceiro Comando para diminuir o poderio do Comando Vermelho. Surgiu nos anos de 1990.

Assim como diz Alba Zaluar, grande pesquisadora das favelas cariocas, o que permite o poderio das facções sobre as favelas é a falta de associação política entre os moradores; a falta de organizações civis que, embora tenham surgido algumas, nas décadas de 40 e 50, com o golpe militar foram fortemente reprimidas e, na redemocratização, foram deixadas de lado, sendo instigado mais o clientelismo, do que o protagonismo político tão carente nas favelas. Esse vácuo fomentado pelo Estado, tornou as favelas como “lugar de ninguém”, sem organização os trabalhadores que lá viviam e vivem, não conseguiram impedir que as lideranças do tráfico dominassem as favelas, e assim, muitas vezes pela força o poder da facção se impôs. De igual modo estabeleceram-se as milícias:

As Milícias

“Todas as milícias possuem as seguintes características:

1) Controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular;

2) O caráter coativo desse controle;

3) O ânimo de lucro individual como motivação central;

4) Um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem;

5) A participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado.”(13)

Os milicianos se estabeleceram, preferencialmente, nas favelas onde o tráfico não atuava(12). Sendo formadas por policiais e militares, somado há uma bancada política, esses agentes do Estado que trabalham por conta própria, sustentam seu poder por meio da extorsão e da violência nas favelas. Mas:

“Além da cobrança de tributos de moradores, os milicianos controlam [também] o

fornecimento de muitos serviços, geralmente a preços mais altos, incluindo a venda de gás, eletricidade e outros sistemas de transporte privado, além da instalação de ligações clandestinas de televisão a cabo.”(14)

Outro sustentáculo de seu poder é o discurso que, sob a promessa de ser uma segurança alternativa aos moradores, proclama-se ser a forma mais concreta de impedir o domínio do tráfico. Esses justiceiros autônomos do Estado, que surgiram a partir dos anos 70, mas que só foram noticiados a partir de 2005(15), na época, até foram legitimados pelo ”então prefeito da cidade, César Maia,” que deu “seu apoio aos grupos de milícias. César inclusive chegou a chamá-las de ‘autodefesas comunitárias’ e um ‘mal menor que o tráfico’.”(16)

Mas na vida cotidiana das comunidades a realidade é outra e a forma de domínio dos milicianos não difere da dos traficantes, a violência e os toques de recolher se mantém, na verdade, o poder das milícias passa a se tornarem até mais autoritário, uma vez que estabelece “regras rígidas nas comunidades sob pena de

castigos violentos em caso de descumprimento, inclusive atuando como grupos de

extermínio."(17) - CAÇADORES DE MARIELLE's

Nos anos 2000, as favelas tornam-se o alvo da disputa de poder entre milicianos e traficantes, reacendendo um novo problema do qual o Estado não conseguia e nem podia esconder. A necessidade de respostas do Estado desencadeia, a partir de então, inúmeras medidas de segurança que fracassaram até o limite das forças estatais, contando com a nova intervenção militar que agora vemos.

- As medidas de “segurança” do Estado.

Com a consolidação do crime organizado, o Estado foi pressionado a dar respostas, porém, durante a década de 2000, as únicas medidas estatais foram mais burocráticas do que concretas, o Estado guiou-se na criação de pastas nas instituições de segurança.

É só a partir de 2008, com as Unidades de Polícia Pacificadora - UPP, que o Estado começa a intervir realmente, sobretudo nas favelas onde o tráfico domina

As Unidades de Polícia Pacificadora - UPP

A iniciativa pautava-se em recuperar os territórios ocupados pelo tráfico; estabelecendo um policiamento comunitário, mais próximo ao cidadão (visão antes nunca esboçada pelo Estado), e abrindo espaço ao serviços públicos.

Foram instaladas no Rio, 38 UPPs, porém, em algumas o contato de policiais e moradores não foi amistoso. A ação conjunta com as Forças Armadas, desencadeou nas UPPs um controle autoritário sobre as favelas, como exemplo, foi a ocupação no Complexo de favelas do Alemão, na Zona Norte do Rio, ocupado em 2010 pela Polícia e pelas Forças Armadas, e que, teve uma UPP instalada dois anos depois. Mas a relação entre moradores e policiais, tanto lá como em outras comunidades, foi tensa.

Ao longo dos anos as UPPs foram se mostrando insuficientes e ineficazes. Em julho de 2013, às UPPs atingiram o estopim da autoritária relação com os moradores, foi nesse ano em que o pedreiro Amarildo foi detido, torturado e morto por policiais na favela da Rocinha. Nunca encontraram seu corpo.

Além de episódios de ações repressoras da polícia, o índice de tiroteios aumentou mesmo com as UPPs. Em julho de 2016, nas vésperas das Olimpíadas, foram 43 tiroteios, duas mortes e 10 feridos.(18)

Os tiroteios avançaram de lá pra cá, só em janeiro deste ano (2018), foram registrados 688 tiroteios no Rio(19). Apenas nas áreas onde há UPPs foram 207 registros de tiroteios/disparos de arma de fogo, sendo as UPPs de Cidade de Deus e Rocinha campeãs de registros, com 46 e 23 notificações cada.(20)

Foram esses dados que exigiram do Estado respostas, principalmente, pela agenda política das eleições. É nesse cenário que chega a última medida estatal imposta às favelas: a Intervenção Militar.

Intervenção Militar

No dia 21 de fevereiro de 2018, o Congresso Nacional aprovou uma medida provisória decretada pelo Presidente da República, Michel Temer, que determina a Intervenção Militar no Rio de Janeiro. Com a medida, a responsabilidade da segurança pública passou a ser dos militares, sendo nomeado o General do Exército Walter Braga Netto como chefe da segurança pública, cargo que lhe permite total poder para gerir a segurança fluminense, controlando a Polícia Civil, a Polícia Militar, os bombeiros e administração penitenciária.

Mas, o que podemos ver de concreto, até agora, é que a intervenção militar não passou de uma medida propagandista, dos quais, os interesses beneficiam o presidente e as milícias. Isso porque, todas as 20 operações da intervenção militar foram somente em favelas dominadas pelo tráfico e nenhuma pelas milícias.

“Do total de ações com militares, 11 foram em locais dominados pelo CV (Comando Vermelho), a maior facção criminosa do Rio. Em cinco ocasiões, deu-se prioridade onde há disputa entre CV, TCP (Terceiro Comando Puro) e ADA (Amigos dos Amigos). Outras quatro foram em locais dominados por TCP ou ADA.”(21)

Tal seletividade, principalmente, com maior enfoque nas favelas controladas por facções, que são as grandes concorrentes das milícias, evidencia o interesse, dessa nova tragédia imposta pelo Estado: o interesse de cooperar com o domínio das milícias.

Mas, somado a essa seletividade das favelas, que garante os lucros para as milícias (visto que, possuem inúmeros vínculos políticos, como aqui demonstramos) as ações militares evidenciam também o caráter civilizatório e higienista herdado e mantido pelas autoridades atuais.

Conclusão

O que a história da relação política entre Estado e favela nos demonstra é que seja por vias higienizadoras, civilizatórias ou autoritárias, o principal objetivo do Estado sempre foi o de impedir que os moradores das favelas se organizassem politicamente; foi (e é) o de impedir que exerçam direitos políticos.

Sob as humilhações das remoções autoritárias e civilizatórias (dos militares), ao abandono e a falsa proximidade dos populistas (Vargas e Brizola), pulsou (e ainda pulsa) nas veias cariocas uma enorme revolta historicamente calada. Essa voz de revolta constrangida no período militar, com mortes e torturas, ressoa nos dias de hoje, em plena “democracia”, rouca e aos prantos de ser novamente calada.

Pois, a história, como podemos observar nos últimos fatos dessa tragédia, segue se repetindo:

Vale destacar que, embora o último golpe tenha pautado-se no âmbito parlamentar e jurídico, os ares do pós-golpe tem cada vez mais absorvido carbonos militares. Haja vista, as últimas declarações de generais do Exército; a convocação, de Michel Temer, das Forças Armadas contra o povo, nas mobilizações de maio de 2017; ou a Intervenção Militar que remonta o estrito controle social dos períodos ditatoriais.

É inegável dizer que o registro de moradores e o controle da entrada e da saída nas favelas, implantado na Intervenção Militar atual, não faça o povo reviver os períodos ditatoriais que já viveram. Afinal de contas, essa intervenção mostra-se ser similar às medidas de Getúlio Vargas, e as que foram adotadas nos períodos mais repressivos do golpe militar.

Outra tragédia repetida, que nos traz lembranças do período ditatorial, é o continuo assassinato e a tortura de lideranças políticas das favelas. O assassinato político de Marielle Franco, por exemplo, evidencia que o Estado ainda sustenta suas ações sob interesses historicamente mantidos, o de impedir que as favelas tenham proximidade política; espaço de fala ou lugar no palco político.

É sobretudo, esse constante e impiedoso impedimento de acesso ao palco político, que mantém e fomenta-se a situação caótica do Rio de Janeiro. Sem organização política própria, a população que nas favelas cariocas vivem são sufocadas por três poderes que disputam seu território, tanto pelas facções que com o tráfico corrompe a juventude pobre; como pelas milícias que se declaram uma segurança alternativa, mas faz dos moradores seus reféns; ou pelo Estado, que legitima a ação desses poderes paralelos, para mantê-los dependentes ou para que os exterminem.

Podemos concluir que, o que demonstrou-se se perpetuar de modo mais cruel foi (e é) a repressão contra toda forma de organização política autônoma dos moradores, que reivindicavam libertar a favela desses poderes repressivos, sob o intuito de fazer com que os próprios moradores guiem seus destinos. Mas a força e a capacidade organizativa, que na história ficaram marcadas, evidência que essa verdadeira ação política não é impossível de se reconstruir.

Todas essas medidas autoritárias que o Estado mantém, ao fomentar a violência, busca esconder que, no meio das balas que disputam o território no Rio de Janeiro, ronda um fantasma chamado organização popular.

Notas

1- Visão Higienista - A favela era tratada, no início do século XX, como uma questão de Saúde Pública, e assim anunciavam-se os jornais da época, através de doutores como Osvaldo Cruz: “A Higiene vai limpar o morro da Favela, do lado da estrada de ferro Central. Para isso, intimou os moradores a mudarem-se em 10 dias”. (ALTIVO; ZALUAR (2006) - p.10)

2- ALTIVO; ZALUAR (2006) - p.11

3- ALTIVO; ZALUAR (2006) - p.23

4- Cidadania regulada - No Período Vargas, a cidadania restringia-se somente ao operariado, contemplando apenas os trabalhadores formais.

5- ALTIVO; ZALUAR (2006) - p.25

6- Clientelismo - prática eleitoreira de certos políticos que consiste em privilegiar uma clientela ('conjunto de indivíduos dependentes') em troca de seus votos; troca de favores entre quem detém o poder e quem vota.

7- FERRAZ, C. A (2012) - p.24

8- IDEM. - p.24

9- IDEM. - p.24-5

10- IDEM. - p.25

11- IDEM. - p.25

12- IDEM. - p.25-6

13- IDEM. - p.29

14- IDEM. - p.27

15- IDEM. - p.28

16- IDEM. - p.28

17- IDEM. - p.28

18- Reportagem do Jornal El País - https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/11/politica/1520769227_645322.html <acesso em 19/04/2018>

19- Dados do serviço colaborativo - Fogo Cruzado: http://fogocruzado.org.br/janeiro-de-2018-houve-417-tiroteiosdisparos-na-cidade-do-rio-cidade-de-deus-rocinha-e-tijuca-lideram-ranking-de-bairros-com-mais-tiros/ <acesso em 19/04/2018>

20- IDEM.

21 - Reportagem Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/operacoes-do-exercito-no-rio-ignoram-areas-dominadas-por-milicias.shtml <acesso em 19/04/2018)

Referências

ALTIVO, M.;ZALUAR, A. (org). Um século de Favela. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006

FERRAZ, C. A. Crime Organizado:diagnóstico e mecanismos de combate. 2012. Monografia (Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia) - Escola Superior de Guerra (ESG)