FAMÍLIA OU FAMÍLIAS?

“(...) mas vem a hora em que todo que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus”

Jesus Cristo.

Um dos aspectos que mais me impressiona – e, por isso, me apaixona – na história da humanidade é a sua ciclicidade: a impressionante capacidade coletiva que temos de repetir espontaneamente os fatos, embora tendo conhecimento, muitas vezes, por experiência própria, dos resultados.

No Brasil, a moda mais recente é bravatear uma suposta defesa da família e dos valores morais (praticamente todos dela derivado) – e isso dentro de uma concepção única, pré-determinada e de origem sobrenatural: um filme já reprisado diversas vezes.

Em respeito ao tempo, à paciência do leitor e, principalmente, às minhas limitações intelectuais e informacionais, destaco, aqui, de modo preliminar, apenas três aspectos dessa controvérsia: unicidade x pluralidade, ideia de família e valores teocráticos x valores democráticos.

UNICIDADE X PLURALIDADE

Dois acontecimentos da História Universal são emblemáticos para ilustrar a tensão (e, dependendo da reação dos envolvidos, os desastrosos resultados) entre esses dois polos. Refiro-me à Inquisição Católica Romana, na Idade Média, e ao Nazismo, que culminou na Segunda Guerra Mundial. Em ambos casos, o fundamento principal dos seus promotores era a ideia de unicidade. No caso da Inquisição, uma Igreja católica (universal e única), porém, romana; ou seja, universal, mas segundo a interpretação de Roma. Fora disso, tudo era heresia, e deveria, para o bem de todos e felicidade geral do Planeta, ser combatido a qualquer custo, incluindo a execução sumária dos terríveis dissidentes. Já o grande ideário dos nazistas era uma raça única e pura, segundo os critérios de pureza definidos pelos próprios. Essas são duas das mais marcantes memórias que temos dos resultados que a tensão entre unicidade e pluralidade pode causar quando a paixão supera a razão, e as particularidades sobrelevam a universalidade.

FAMÍLIA OU FAMÍLIAS?

Sempre que me deparo com eufóricas e apaixonadas defesas da Família – como “célula-mater da sociedade”, como “núcleo do desenvolvimento moral da pessoa humana”, como “último fronte moral da sociedade”, etc. e etc. –, fico a me perguntar: “Do que mesmo essas pessoas estão falando?” “Ao que ou a quem elas estão se referindo?”

Normalmente, as referências são à família heteroparental, monogâmica e nuclear; ou seja, a convencional família burguesa de inspiração cristã: burguesa por ser nuclear (apenas pais e filhos) e de inspiração cristã por ser monogâmica, já que esse conceito não é encontrado (pelo menos tão fortemente) entre civilizações anteriores ao cristianismo, nem mesmo entre monoteístas, como os judeus (de onde os cristãos descendem), que eram completamente tolerantes à poligamia.

Não vejo nada de grave ou ameaçador na defesa desse perfil como o ideal de família. Como cristão, não consigo vislumbrar proposta melhor. Minha apreensão surge quando a defesa não é desse modelo apenas como o ideal ou melhor, mas como o único aceitável.

Nesse particular, não vejo como fugir a algumas provocações reflexivas: 1) a Família (convencional), ao que nos consta, é a instituição mãe (ou originadora) de todas as demais; afinal, todos os atores sociais advêm de uma família ou, na pior das hipóteses, como resultado de [pelo menos] uma relação entre duas pessoas de sexos opostos – ainda que, às vezes, intermediada por outros mecanismos que não o contato físico direto. Assim sendo, embora de maneira simplista (porém, não leviana), não há como concluir de outra forma: se a sociedade é, hoje, um espaço caótico, a Família assim se tornara muito anteriormente. Partindo dessa premissa, atribuir à sociedade a deterioração da Família (e não o inverso) é tão racional quanto conceber o punho como extensão dos dedos, e não o contrário, ou responsabilizar o fruto por sua má qualidade, e inocentar a árvore que o gerou. 2) Por que razão a família hétero seria o único modelo aceitável em uma sociedade cosmopolita, secular e plural? Se o que rege a sociedade é a Constituição (e não a Bíblia ou qualquer outro oráculo sagrado) e, à luz desta, todos somos iguais em deveres e direitos, e a opção (orientação, definição natural/cultural, preferência...) sexual das pessoas não é crime, onde está o problema? O que nos impede (héteros e homos, crentes e incrédulos, ricos e pobres, pretos e brancos, doutos e iletrados, gordos e magros, altos e baixos, feios e belos, de direita e de esquerda, do centro, do meio, do lado, etc.) de ter uma convivência, mais que pacífica, amigável, harmônica, proativa e solidária? E 3) Se a homossexualidade é algo tão terrível e monstruoso, capaz de exterminar a família convencional (como muitos alardeiam constantemente), o que dizer da própria Família, de onde surgiu essa “terrível e ameaçadora aberração”?! Eu não conheço nenhum(a) homossexual que tenha nascido de um casal homo. Você conhece?!

DEMOCRACIA X TEOCRACIA

A frase do momento é “os valores estão invertidos”.

O que as pessoas que vivem repetindo essa frase não esclarecem é a que valores estão se referindo.

Primeiramente, valor (em qualquer sentido) está diretamente relacionado a alguma referência que o define como tal. Por exemplo: o real é uma moeda de pouco valor, tendo como referência o euro; porém tem um valor altíssimo quando comparado ao bolívar venezuelano. Tratando-se especialmente de questões relacionadas à sexualidade humana, qual é a referência que estamos empregando para classificar os tais valores e, principalmente, para defini-los como invertidos?

É de imprescindível alvitre atentar para o fato de que somos uma Democracia (com todas as nossas limitações e imperfeições, mas somos), não uma Teocracia. A suposta (para os incrédulos, e real para os crentes) Lei de Deus (e seus inumeráveis princípios) tem validade apenas para aqueles que, espontaneamente, nela acreditam; bem diferente da Constituição, aplicável a todos, indiscriminadamente e independente de prévio assentimento ou concordância particulares ou individuais.

Diante de tanto barulho de palavras – e estarrecedor silêncio de ações – do mundo professamente cristão, algumas vezes, chego a me indagar: “Qual é a parte do ‘meu reino não é deste mundo’ que nós ainda não entendemos?!”

Como prometi ser sucinto, apenas uma frase já publicada em outro momento: “Deus não cabe na Constituição de nenhum país democrático”.

PALAVRAS [quase] CONCLUSIVAS

Apenas para pensarmos um pouco antes de dormirmos: segundo a imprensa internacional, o Brasil é, no mundo, o país onde mais se assassina homossexuais; ao passo que em nações em que o ateísmo (ou a não declaração de credo) predomina é onde estes são mais tolerados.

O paradoxo, pra mim, estarrecedor é ser obrigado a constatar que o país mais (proporcionalmente) cristão [excetuando-se o Vaticano] do mundo é o que mais extermina pecadores; ao passo que nos mais incrédulos é onde estes são mais e melhor acolhidos.

De fato, acho que há mesmo uma [grave] inversão de valores.

#DeusNosAcuda!