Ética em pesquisa
“Primum non nocere.”
(“Primeiro não prejudicar”, Hipócrates)
O caso veio a público no final do ano de 2005, causando alarde e indignação. Uma pesquisa desenvolvida em três comunidades ribeirinhas do Amapá (São Raimundo do Pirativa, São João e Santo Antônio do Matapi) denominada "Heterogeneidade vetorial e malária no Brasil", com intuito de estudar a dinâmica da transmissão da malária e desenvolver estratégias para prevenção, utilizou-se de cobaias humanos gerando um surto localizado da doença.
Coordenada pela Universidade da Flórida e financiada pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NHI), com a parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e da Secretaria de Vigilância em Saúde do Amapá, a pesquisa, em curso desde 2002, tinha por escopo a captura do mosquito transmissor durante nove noites consecutivas, em jornadas de seis horas, duas vezes por ano. Por este trabalho, os membros da comunidade recebiam uma “ajuda de custo” diária de R$12,00, perfazendo um total de R$108,00 – um valor significativo para famílias formadas, em média, por mais de dez pessoas com renda mensal da ordem de R$300,00.
A questão é que o trabalho não se resumia à atividade de captura. Cada um dos “voluntários” tinha que se submeter à ação dos mosquitos em seus braços e pernas. A meta era de cem picadas por noite, em quatro sessões de 25 picadas. Quem não cumprisse com sua cota não recebia a diária.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP, pelo Comitê de Ética do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, unidade da Fiocruz em Pernambuco, pelo Comitê de Ética da Universidade da Flórida e pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), órgão subordinado ao Ministério da Saúde. Detalhe: a tradução do projeto de pesquisa do inglês para o português, apresentada pela entidade norte-americana aos parceiros no Brasil, omitia a utilização de “iscas humanas” bem como sua remuneração. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) suspendeu a pesquisa em dezembro de 2005.
Os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) são órgãos institucionais interdisciplinares e independentes, constituídos por profissionais de ambos os sexos, da área de saúde, ciências exatas, sociais e humanas, além de pelo menos um membro da sociedade representando os usuários, todos sem remuneração. Apresentam caráter consultivo, deliberativo e educativo, com função de avaliar projetos de pesquisa que envolvam a participação de seres humanos e animais. Criados com base na Resolução 196/96 do CNS e credenciados pelo CONEP, devem defender os interesses dos indivíduos pesquisados em sua integridade e dignidade e contribuir para o desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos.
A eticidade de uma pesquisa implica em quatro princípios básicos:
a) autonomia: consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes;
b) beneficência: ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos. O Princípio da Beneficência estabelece que devemos fazer o bem aos outros, independentemente de desejá-lo ou não. O Dr. José Roberto Goldim distingue com coerência três conceitos: beneficência é fazer o bem, benevolência é desejar o bem e benemerência é merecer o bem;
c) não maleficência: obrigação de não infligir dano intencional e garantia de que danos previsíveis serão evitados;
d) justiça e equidade: relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária.
Pessoalmente, tive o prazer de integrar um dos 500 comitês de ética em pesquisa instituídos em nosso país. Fazíamos reuniões todos os meses para avaliar projetos apresentados por profissionais que têm, muitas vezes, na arte de curar, o seu ofício. Formando uma equipe heterogênea e sem compromisso com grupos ou entidades, avaliávamos, discutíamos, orientávamos e aprovávamos ou reprovávamos um projeto. Tudo isso com uma atuação consciente de que milhões de dólares da poderosa indústria farmacêutica passavam por nossas mãos, mas que acima de tudo estavam nossa consciência e a crença na virtuosidade humana.
O Instituto Nacional de Saúde dos EUA colocou US$ 1 milhão a serviço do tal projeto que acometeu pessoas muito pobres residentes no extremo norte de nosso país. Quero acreditar que os princípios ainda vicejem sobre o capital, que mais uma morte não seja considerada apenas como uma morte a mais ou, ainda pior, como uma morte necessária. Enfim, que a ética prevaleça sobre a política, que cartorialmente é corrompida e ordena um “Cumpra-se” a despeito de tudo e de todos.
* Tom Coelho é educador, palestrante em gestão de pessoas e negócios, escritor com artigos publicados em 17 países e autor de nove livros. E-mail: tomcoelho@tomcoelho.com.br. Visite: www.tomcoelho.com.br, www.setevidas.com.br e www.zeroacidente.com.br.