AS TRAGÉDIAS DOS MUNICÍPIOS MINEIROS DE JANAÚBA E PAVÃO: QUANDO O ABUSO DE CONFIANÇA MATA

*Por Herick Limoni

A confiança é, sem dúvidas, um dos sentimentos mais importantes que permeiam as relações humanas. Arrisco-me a dizer que a confiança é tão ou mais importante que o amor nas relações cotidianas. Tal qual o amor, desde tenra idade somos apresentados a esse sentimento que irá nos acompanhar por toda a vida, dure ela o quanto durar.

Nos primeiros meses de vida somos total e completamente dependentes de outras pessoas, e ali começamos a experimentar o que é confiar. Quando um pai coloca seu filho em um patamar mais alto, estende os braços e pede ao filho que salte, este salta quase sem hesitar, tamanha a confiança que tem de que seu pai não lhe deixará cair.

Quando adultos somos obrigados a confiar diariamente em outras pessoas, do contrário, nossa vida não seria nada fácil. Ao embarcarmos em um avião, por exemplo, temos de confiar que o piloto está em plenas condições de operar aquela aeronave, e que está psicologicamente bem para não cometer uma sandice. E assim também o é com o motorista de táxi, do ônibus, com o médico que nos receita medicamentos etc.

A confiança é tão importante que, para alguns crimes do nosso código penal, como no caso do furto, o abuso dela representa uma qualificadora, o que aumentará a pena do autor.

Nessa mesma esteira, a psicologia nos apresenta o termo francês denominado rapport, que é a capacidade de se criar aspectos comuns entre duas ou mais pessoas, gerando uma atmosfera de respeito e confiança.

Nos dois casos sobre os quais discorrerei a seguir, o abuso de confiança contribuiu decisivamente para as tragédias.

O CASO DE JANAÚBA

Na manhã da última quinta-feira, dia 05 de outubro, o vigia do Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente, situado no bairro Rio Novo, em Janaúba/MG, adentrou à creche onde se encontravam mais de 80 pessoas - a maioria crianças menores de cinco anos - fora do seu horário habitual de trabalho, trancou a porta, derramou um líquido inflamável sobre seu corpo e sobre o corpo de diversas outras pessoas e ateou fogo. Até o momento, o saldo trágico desse ato apresenta onze pessoas mortas, entre elas o próprio vigia, e muitas outras crianças ainda internadas, algumas em estado grave.

Durante algumas entrevistas com moradores que conheciam o autor, veiculadas nas rádios e emissoras de televisão, muitos afirmaram tratar-se de pessoa de bem, pacata, sobre quem não pairavam dúvidas sobre sua sanidade mental. Posteriormente tentou-se, em vão, na minha opinião, buscar fatos pretéritos que explicassem os motivos que o levaram a cometer ato tão extremo. Não encontraram carta de despedida. Aos familiares, ele não deu um sinal sequer de que faria o que fez. Nesse caso, somente ele seria capaz de esclarecer essa dúvida, mas ele está morto! O certo é que, por ser vigia e conhecido de todas as vítimas, abusou da confiança que nele depositaram para interromper, brusca e cruelmente, algumas vidas.

O CASO DE PAVÃO

No dia 07 de outubro último, uma mulher de 30 anos foi assassinada a facadas pelo ex-marido, no interior de uma viatura da Polícia Militar, quando ambos eram conduzidos a uma delegacia. Em princípio, pode-se inferir que os dois policiais que compunham aquela guarnição devem ser responsabilizados pela morte da jovem mulher. Em alguns comentários lidos, muitas pessoas criticam a atitude dos dois policiais. Muitos “profetas do acontecido” questionam por que o marido não foi conduzido no compartimento de segurança da viatura policial. Outros, perguntam por que ele não foi algemado antes de ser embarcado na viatura. Caso os policiais tivessem agido dessa forma e, durante o trajeto de 96 km entre o município de Pavão e Teófilo Otoni, onde fica a delegacia de plantão, a viatura viesse a se acidentar e o ex-marido tivesse ido a óbito, certamente essas mesmas pessoas os criticariam por ter algemado um cidadão de bem, sem passagens pela polícia, comerciante conhecido da cidade etc. Não faltariam predicados ao falecido para deturpar a ação policial. Muitos alegariam abuso de autoridade.

Contudo, o que levou a mais essa tragédia foi o abuso de confiança. Segundo relato dos policiais, o autor não tinha histórico de agressões. Por ser uma cidade pequena, quase todas as pessoas se conhecem, e os policiais não tinham nenhum motivo para acreditar que o ex-marido de Laís fosse assassiná-la, ainda mais no interior de uma viatura policial e na presença de duas autoridades. Eles não tinham motivos para algemá-lo ou conduzi-lo no compartimento de segurança. Caso o fizessem, aí sim estariam incorrendo em abuso.

Sobre o uso de algemas a Súmula Vinculante nº 11, do Supremo Tribunal Federal assevera que "só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado". Não era esse o caso.

De igual maneira, não seria justo argumentar que os policiais falharam ao não revistar o autor antes do embarque na viatura. Repito que os policiais envolvidos não tinham motivo algum para desconfiar do autor. Não era um caso de agressão. Não se tratava de um bandido conhecido. Não havia histórico de agressões. E se fosse o contrário? E se Laís tivesse assassinado seu ex-marido? Policiais masculinos, salvo raras exceções, não podem proceder busca pessoal em mulheres. Nesse caso, o que os críticos iriam argumentar?

Todos os dias milhares de conduções idênticas a essa são realizadas pelas policiais militares e guardas civis Brasil afora. E na grande maioria delas não são utilizadas algemas e as partes envolvidas são conduzidas no banco de trás da viatura policial. E em quase nenhuma delas nada sequer parecido acontece. Alguém se lembra de outro caso deste? Eu não me lembro.

Não há como saber o que se passa no coração e na cabeça das pessoas. Os policiais tomaram a decisão que, por certo, acharam a mais adequada para aquele caso. Já deviam ter realizado conduções semelhantes dezenas ou centenas de vezes. E nada parecido havia ocorrido. Porque mudar o procedimento agora, se não havia justo motivo?

Certo é que, nesse exato momento, estão os dois preocupados em perder seus empregos, por algo que fugiria ao controle de qualquer pessoa. Não podemos condenar a atitude que tomaram, pois estaríamos sendo injustos. Dificilmente qualquer um de nós agiria de outra forma. Eles não são culpados. Culpado é o ex-marido que a assassinou. Esse sim merece nossa total e veemente reprovação pelo feminicídio que cometeu, crime que insiste em perdurar em razão do sentimento de impunidade que grassa nesse país. A César o que é de César!

E quem nunca confiou em alguém, que atire a primeira pedra.

*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas