Sobre vulnerabilidade social e revitimização
Um termo bastante utilizado nos campos da Psicologia e do Direito é o da revitimização. A revitimização acontece principalmente em uma esfera institucional, quando por exemplo, há uma vítima de abuso sexual que, após o sofrimento da violência própria, é interrogada de forma inescrupulosa de modo a lembrar, de maneira dolorosa, os momentos em que esteve sob o jugo do agressor.
Um caso de repercussão nacional de revitimização, ocorreu ano passado, com uma adolescente de 14 anos na cidade de Julio de Castilhos no interior do rio Grande do Sul. A adolescente sofreu violência sexual pelo genitor e em determinado momento da investigação, mudou a versão inicial de seu depoimento (supostamente pressionada pela família), o que suscitou a ira do promotor de justiça, que passou a condená-la, direcionando-lhe palavras de baixo calão, ameaçando-a, fazendo com que revivesse os difíceis momentos de abuso pelos quais passou. Apuradas as investigações, ficou comprovado que o crime foi cometido pelo genitor, demonstrando a tamanha falta de preparo daquele que deveria agir como promotor de justiça e não o contrário. A revitimização sofrida por essa adolescente ocorre com inúmeras outras mulheres quando sofrem algum tipo de abuso e resolvem denunciar. Não poucas vezes, além da violência sofrida pelo agressor são violentadas por pessoas ligadas ao sistema, quando questionadas sobre a vestimenta usada, se ingeriram bebida alcoólica ou outras questões, atribuindo a culpa do crime à vítima e não ao agressor, reafirmando uma sociedade misógina e machista.
Infelizmente, a revitimização é sofrida não somente por mulheres como também por outros sujeitos vulneráveis como observado em uma postagem em rede social que retrata uma cena em um ônibus coletivo em uma metrópole brasileira. A cena envolvia um garoto de dez anos que entrou no ônibus com o objetivo de entregar um bilhete pedindo dinheiro para ajudar a família. Um dos passageiros, um jovem que aparentava cerca de 30 anos, bem vestido, ao presenciar a ação da criança, começa a sua fala de revolta, dizendo em alto e bom som que aquilo era crime e que muito provavelmente a mãe estava em casa, fazendo outros filhos e botando a criança para trabalhar. O menino, claramente incomodada revidou dizendo que não falasse assim de sua mãe que ela estava no outro ônibus também, pedindo ajuda. Ambos começam uma discussão, homem e criança. O mais velho ameaçando que chamaria a viatura e o Conselho Tutelar e o menino, enfrentando e dizendo que poderia chamar o que quisesse, porque o que fazia era problema seu e de mais ninguém. Entre revoltado e triste tentava responder ao homem sempre reafirmando que ninguém tinha nada que ver com sua vida. O homem continuou um bom tempo falando que era crime, que a mãe era "uma da vida" que só sabia fazer filhos e que o menino não defendesse alguém que não se importava com ele. A maioria dos passageiros apoiava a fala do rapaz e a outra parte seguia calada, até que o ônibus pára e o menino desce de cabeça baixa quase chorando com os insultos que acabara de sofrer.
Ainda na temática da revitimização, mesmo que em viés diferente daquele citado há pouco é possível contar as inúmeras situações em que esta criança é vítima a partir deste pequeno relato. A criança é insultada assim como sua mãe, por não ter conseguido encontrar uma forma digna de sobreviver. Como se viver na miséria fosse culpa de ambos. A responsabilidade mais uma vez recai sobre a mulher já que em nenhum momento o pai da criança é questionado ou chamado de "homem da vida" por não ajudar o filho. A criança vítima da exclusão social é também vítima do silêncio da plateia que alheia ou aturdida, em nada intervém ao presenciar tamanha violência. A sociedade do espetáculo é cruel e reafirma a existência de um estado omisso e injusto que cada vez mais violenta a mulher, a criança, os mais vulneráveis. Que sejamos menos discurso e mais ação na defesa dos mais fracos que são humilhados cotidianamente nas ruas da cidade. Que nos indignemos mais na defesa daquele que Paulo Freire chama de "esfarrapados da vida". Que possamos superar a alienação e agir mais em prol do outro em busca de uma sociedade menos injusta. Somos testemunhas de muitas ações injustas cotidianamente na família, no trabalho na rua. Calar-se é muitas vezes ficar do lado do opressor.
(Comentário produzido para a rádio 9 de Julho)