Compradores seriais
“Viva com lobos, e aprenderá a uivar.”
(César Bórgia)
A psicologia registra a existência de algumas personalidades enquadradas como sendo do tipo maníaco-depressivas destacando-se os chamados serial killers, ou seja, os assassinos seriais. O mundo corporativo, por sua vez, legou-nos uma versão singular: o comprador serial.
Ele apresenta uma personalidade sui generis. Em geral, são pessoas introvertidas que falam pouco e, quando abrem a boca, o fazem de forma muito objetiva. Também não escutam muito porque não têm paciência ou tempo para ouvir. Na verdade, procuram ouvir apenas aquilo que lhes convém, que lhes agrada, que atende aos seus interesses.
São pessoas mal-humoradas que dificilmente esboçam um sorriso, porque um semblante feliz tem a peculiaridade de desarmar a mais sólida das barreiras, o mais edificado dos muros. E procuram não demonstrar simpatia, ainda que adotando a verve de “parceiro”.
São também presunçosos e acreditam sempre estar a serviço da verdade. De fato estão: da verdade deles.
São prepotentes. Como deles deve partir a decisão de uma operação de compra e venda, assumem uma postura quase ditatorial, megalômana.
Vestem-se normalmente de forma simples, despojada. Raramente você os encontrará trajando um terno ou um tailleur bem cortado.
Embora tenham toda essa postura, trabalham em ambientes pouco agradáveis, em salas apertadas, com mesas pequenas e cadeiras nem sempre confortáveis. Habitam, quase que por regra, grandes corporações, porque não há como se portar de forma tão inflexível e intransigente à frente de uma pequena ou mesmo média empresa, pois nestas ainda é possível considerar-se o aspecto humano e não apenas o comercial em uma negociação.
Aliás, negociação é palavra que até transita pelo vocabulário dos compradores seriais, mas apresenta outra conotação. Não acreditam na fábula do ganha-ganha porque são treinados a encarar o vendedor como inimigo número 1. E não têm limites em suas requisições: o limite é aquele que o permita escorchar ao máximo seu fornecedor.
Nas grandes companhias, face ao peso do nome da empresa em que atuam e do volume de compras que potencializam, sentem-se onipotentes, referendados para expor suas condições comerciais. É comum encontrá-los no segmento supermercadista ou ainda no setor de autopeças. Talvez eles saibam, talvez não, mas agem como verdadeiros assassinos de empresas. Fazem compras na medida daquilo que acreditam ser o necessário e alteram as regras do jogo a seu bel-prazer.
Impõem aos fornecedores a concessão de descontos os mais diversos, travestidos sob a forma de bonificações, cortesias, brindes, patrocínios, amostras, inserção em tabloides ou demais campanhas publicitárias, crédito de ICMS ou IPI, indenização de encalhe, promoções, lançamentos, cadastramento de item, enxoval, reinauguração, datas comemorativas.
Impõem prazos de entrega estreitos, sempre que possível, forçando jocosamente o fornecedor a arcar com ônus não previstos com fretes e serviços adicionais processados extraordinariamente.
Impõem prazos de pagamento paulatinamente mais elásticos. E irreais. O que figura de uma forma no papel é exercido de outro, na prática. Faturamento para 30 dias não existe; 60 dias viram 90, que por sua vez viram 150, e este último pode se converter em devolução decorrente de um eventual encalhe.
Impõem preços lastreados em sua força de barganhar por conta dos volumes de compra e utilizam chantagem para fazer valer seus interesses. Cadastram em seus computadores preços mais baixos para sensibilizar o vendedor a conceder mais descontos. Procuram desestabilizar os vendedores com exigências impossíveis, ameaçando a todo instante romper a negociação, retirar o produto de linha, diminuir a exposição do produto para o consumidor final e até mesmo excluir a empresa do quadro de fornecedores.
Os compradores seriais não entendem – ou são orientados a não compreenderem – como funciona, de fato, uma cadeia produtiva. Preferem esgarçar seus fornecedores com a certeza plena de que sua morte suscitará o nascimento de outra empresa, talvez melhor, não técnica ou qualitativamente, mas melhor porque despreparada e desconhecedora das regras do jogo.
A vida de comprador também não é fácil, muito embora a grande maioria não caminhe pelas ruas sob sol e chuva no exercício do ofício, ainda que visitem esporadicamente seus fornecedores para conhecer in loco sua infraestrutura e seu processo fabril – descobrindo outras formas de se fazer novas exigências. Trabalham por longas horas atrás de mesas e computadores e são cobrados permanentemente por resultados. Mas isso não deveria lhes tirar a sensibilidade.
Se você identificou e encontrou pelo seu caminho um comprador serial, há dicas para lidar com ele.
1. Aprenda a jogar. Compradores seriais não têm dó de vendedor. Eles jogam o “jogo dos maus” e estão sempre prontos para abrir seus “sacos de maldades”. Cabe ao vendedor aprender a jogar xadrez e cartas. O primeiro, para desenvolver a capacidade de projetar o futuro, de imaginar uma partida em sua amplitude a cada lance, a cada movimento de cada peça. O segundo, porque é preciso aprender a blefar. E o bom blefe não é fácil porque envolve postura correta, firmeza no olhar, sorriso autêntico e entonação de voz adequada. Compradores gostam de blefar, usando argumentos falsos como melhor oferta, maior giro e prazo oferecidos pelos concorrentes. O bom blefe é tão bem realizado que até quem o pratica acredita ser verdade. Não é preciso mudar de estilo, mas apenas lapidar, afinar suas percepções e, a partir delas, traçar estratégias.
2. Utilize rapport e outras técnicas de PNL (programação neurolinguística). Analise o comprador. Perceba-o. Obtenha o máximo de informações sobre sua personalidade. Sendo ele introspectivo, tente quebrar o gelo apenas uma vez, não uma segunda. Sorriso amarelo ou piadas infames podem até prejudicar a credibilidade do relacionamento. Trabalhe para descobrir seus pontos fracos. E seja inteligente: finja-se de idiota.
3. Seja assertivo. Mostre quem você é, a empresa que representa, o produto que está ofertando, suas vantagens e seus benefícios. Demonstre a ele o que a empresa vai ganhar. Coloque os atributos reais na mesa e apenas depois comece a lidar com atributos intangíveis.
4. Negocie com moderação. Apresente o preço em doses homeopáticas e nunca ofereça com celeridade suas melhores condições. Se na ânsia de obter o pedido e aproveitar uma oportunidade você queimar todos os seus cartuchos, poderá lograr êxito em uma única venda apenas. É imprescindível manter margem de manobra. Seja sempre subordinado a alguém, ainda que a empresa toda esteja personificada em você. O comprador precisa crer que você tem autonomia limitada. Não faça concessões sem uma contrapartida. Se desejam mais prazo, que aumentem o lote a ser adquirido. Se querem menor preço, que antecipem o pagamento. Lembre-se de que mais de 80% dos negócios são fechados a partir da quinta etapa de conversações. Por isso, seja seguro de si, combatendo o medo de perder.
5. Mostre-me bem preparado. Os compradores abominam tratar com vendedores organizados e esclarecidos. Preferem os profissionais desinformados, que não conhecem em profundidade a empresa e sua política comercial. Apreciam os vendedores “antigos”, porque acham que sabem tudo, e também os mais jovens, tidos como inexperientes e inseguros. Desenvolva sua capacidade de argumentação, seja pontual – ainda que você recorrentemente aguarde na sala de espera ou tenha sua reunião cancelada na última hora – e aprenda a fazer contas utilizando uma calculadora financeira.
6. Cultive o respeito. Não o deixe pensar que é o único e mais importante cliente. Trate-o como igual. Esteja preparado para as diversas demandas que ele trará à baila. O comprador serial barganhará desconto comercial, desconto financeiro e até desconto tributário, nessa ordem. Não se deixe abalar por frases como: “Você pode fazer melhor do que isso”, ou ainda, “Vendo o que compro e nem sempre compro o que vendo”.
7. Seja ético. Mas o faça de acordo com seus princípios pessoais e os valores de sua companhia. Cuidado com as propinas, os presentes e os pedidos de favorecimento. De exceção, eles podem se tornar regra. E uma grande armadilha. Todavia, esteja sempre no jogo.
O relacionamento vendedor-comprador pode ser um árduo jogo de tênis ou uma agradável partida de frescobol. Atingir o topo não é fácil e, como bem pontuou Nietzsche, “No alto da montanha é mais quente do que as pessoas do vale imaginam que seja, especialmente no inverno”. De fato, há muito espaço disponível lá em cima, embora jamais haja lugar para sentar...
* Tom Coelho é educador, palestrante em gestão de pessoas e negócios, escritor com artigos publicados em 17 países e autor de nove livros. E-mail: tomcoelho@tomcoelho.com.br. Visite: www.tomcoelho.com.br, www.setevidas.com.br e www.zeroacidente.com.br.