70 não é febre
“Nada mais comum do que julgar mal as coisas.”
(Cícero)
“Filha, leve um agasalho, pois vai esfriar.”
“Querido, lembre-se de seu guarda-chuva; parece que vai chover...”
“Não vá tomar gelado!”-
Quem de nós já ouviu uma dessas frases dos pais? E, aos que agora também são pais, quem não as pronunciou aos seus filhos?
Somos o legado social de uma cultura que venera a superproteção e tem aversão ao risco, por menor que ele seja, por mais saudável que ele possa vir a ser. A ordem é construir um muro ao redor de nosso mundo privado, encasular-se e defender as zonas de conforto conquistadas com ardor. Desse estado de coisas advêm duas consequências imediatas.
A primeira delas é o estímulo à mediocridade. E, ao contrário do que o senso comum tem por hábito avaliar, ser medíocre não significa ser inferior, mas tão somente mediano. Representa ser modesto, inexpressivo, ordinário. Fazer apenas o mínimo necessário para seguir adiante. Assim são as pessoas medíocres: não se destacam e não chegam a fazer a menor diferença.
Temos o aluno medíocre, desinteressado em aprender, em conhecer, em saber. Limita-se a marcar presença nas aulas e a estudar nas vésperas das provas decorando fórmulas matemáticas ou definições de conceitos. Recebe nota cinco, numa escala de zero a dez, digna para fazê-lo passar de ano. Vai engordar a massa de operários na vida profissional, seja apertando parafusos ou preenchendo relatórios. E, assim, vai passar pela vida, sem deixar lembrança, legado ou marca.
Temos os cônjuges medíocres, inábeis para manter acesa a chama do relacionamento e ainda mais incapazes para romper o que já acabou. Passam a vida achando que colocar alimento na mesa, fazer sexo de vez em quando e dizer protocolarmente “eu te amo”, sem mirar os olhos, são atitudes suficientes. Alternam almoços insípidos aos domingos na casa dos sogros, trocam abraços sem calor nas noites de Natal, tudo para manter a estabilidade familiar.
Temos os profissionais medíocres, com inteligência bastante para ler as horas no relógio, batendo cartão ou assinando o ponto nos horários determinados. Respondem metodicamente seus e-mails, falam com parcimônia ao telefone, fazem exatamente aquilo que deles se espera. Nem mais, que possa gerar desconfiança em seus pares, nem menos, que possa comprometer sua sólida posição no organograma. São limitados como o cargo que exercem, como os executivos que o contrataram, como a empresa na qual trabalham. Limitados e sem futuro. Ou, se preferirem, com o futuro limitado ao horizonte de um palmo.
Nessa toada, há mediocridade por todos os lados. Nos pais que não desviam o olhar da telenovela ou do jornal quando têm a atenção solicitada pelos filhos pequenos, nos amigos que nos procuram apenas quando necessitam de algum favor, nos padres que recomendam um punhado de orações para salvar a alma dos fiéis quando deveriam ouvir-lhes o coração e lhes abrandarem as angústias.
A segunda consequência é a presunção da verdade, uma autêntica mania de extrair conclusões, às vezes obtusas, a partir de informações parciais ou carentes de fidedignidade, criando o que o escritor Richard Carlson chamou de “bola de neve mental”.
Às vezes você está preso num engarrafamento, atrasado para um encontro, e uma sensação terrível começa a tomar conta de seu pensamento. Você imagina que seu compromisso fracassará em razão de seu atraso. Conclui que será julgado indolente e irresponsável. A impaciência domina seus sentidos. Seus batimentos aceleram, as pupilas dilatam, a música no rádio torna-se barulho, você tem vontade de avançar com seu carro sobre os que estão à sua frente. Por fim, após todo o estresse a que se submeteu, chega ao destino e descobre que ainda há pessoas igualmente atrasadas.
O hábito de cultivar as bolas de neve mentais é fonte não apenas de estresse, mas também de insegurança, conflito e desamor.
Nem tudo é como aparenta ser. Um termômetro que marca 37 graus não necessariamente indica ocorrência de febre. Da mesma forma, um erro corporativo pode não ser motivo para uma demissão, um telefonema suspeito pode não ser suficiente para perpetrar uma separação, um ponto de vista discordante não deve macular uma amizade.
Somos em essência passionais, mesmo aqueles que se dizem movidos pela razão. Por isso, deve-se evitar reagir a determinados eventos antes de 24 horas. É claro que há momentos em que a temperatura sobe. Afinal, as razões do coração turvam-nos a mente e levam-nos a decisões das quais podemos nos arrepender na manhã seguinte. Porém, entre um dia e outro, com uma noite de descanso no meio, o que se mostrou um problema irresoluto surgirá não menor, mas com dimensões reduzidas à sua realidade.
* Tom Coelho é educador, palestrante em gestão de pessoas e negócios, escritor com artigos publicados em 17 países e autor de nove livros. E-mail: tomcoelho@tomcoelho.com.br. Visite: www.tomcoelho.com.br, www.setevidas.com.br e www.zeroacidente.com.br.