PIPAS¹ NO AR E PERIGO NA TERRA: O USO DE LINHAS CORTANTES
1 - No Brasil, há diversos e diferentes nomes para identificar esse objeto voador, por isso optei por utilizar o que considero o mais conhecido deles
*Por Herick Limoni
"Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência" (Karl Marx)
Com a chegada das férias escolares do mês de julho, aliada aos abundantes ventos do final de outono e início de inverno no Brasil, ocorre, todos os anos, um fenômeno no céu: a invasão de pipas país afora. Por se tratar de brincadeira de baixo custo e diversão garantida, o ato de soltar pipas vem se perpetuando ao longo dos anos, passando de geração a geração.
Os primeiros relatos da utilização desse simples mas engenhoso objeto voador remonta a 200 antes de Cristo, na China. De lá para cá, muita coisa mudou. Quando comecei a me interessar pela brincadeira, lembro-me bem, meu pai era quem fazia as minhas pipas. Elas eram de seda, coloridas e, no lugar da hoje conhecida rabiola (tiras de plástico presas por uma linha e que servem para dar sustentação à pipa) utilizava-se uma espécie de corrente, feita de elos de seda, que também era colocada em cada lateral da pipa, num total de três. No ar, ficavam lindas. Com o passar dos anos esse tipo de pipa (que meu pai fazia) praticamente foi extinta. Era uma das minhas diversões preferidas, assim como é a de muitas crianças, adolescentes e até mesmo adultos nos dias de hoje.
Mas, como salientei, muita coisa mudou. A principal e mais preocupante delas foi a introdução do uso do chamado cerol (mistura de cola e vidro) na linha das pipas, utilizado para cortar a linha do adversário nos combates aéreos. Há cerca de 20 anos não havia notícia da utilização desse tipo de mistura, ou, se era utilizada, não havia notícia de ferimentos ou mortes provocados em virtude disso. Um dos fatos que pode ajudar a explicar essa questão é o expressivo aumento na quantidade de motocicletas em circulação, cujos condutores são as principais vítimas.
Segundo reportagem do site G1, publicada em 04 de maio de 2015, no ano 2000 havia no Brasil 2,48 milhões de motos. No ano de 2014, esse número saltou para 13,12 milhões, representando aumento de 429%. No mesmo período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a população brasileira aumentou de 173.448.346 para 202.768.562, representando um aumento de 16,90%. Percebe-se, através dos dados apresentados, que o percentual de motocicletas nas ruas aumentou bem mais que o percentual de aumento da população, o que indica que muitos mais brasileiros passaram a utilizar esse tipo de veículo do ano 2000 para cá. A facilidade de deslocamento nesse trânsito cada vez mais caótico das grandes cidades e o consumo menor em relação aos demais veículos motorizados têm contribuído para esse aumento.
Na esteira desse aumento cresce, de igual maneira, o número de acidentes causados por linhas com cerol. Apesar de não haver pesquisas disponíveis que sustentem essa afirmação, não há dúvida de que os acidentes aumentaram. No mês passado, na cidade de Igarapé, em Minas Gerais, uma criança de cinco anos morreu em virtude de ter seu pescoço cortado pela linha de uma pipa. No dia 04 desse mês, na cidade de Ribeirão das Neves, também em Minas Gerais, um motociclista morreu eletrocutado, após ser atingido por um fio da rede elétrica que, segundo informações, foi rompido pela linha de uma pipa. Estes são dois recentes exemplos que demonstram o quão perigosa se transformou essa brincadeira.
Não bastasse o uso da mistura fatal de cola e vidro, os “espertinhos de plantão”, com sua visão empreendedora, lançaram uma linha, conhecida como chilena, que já vem preparada com esse elemento cortante, reduzindo o trabalho e facilitando a vida dos praticantes. Com a mesma estratégia utilizada por fábricas de brinquedos para chamar a atenção das crianças, as linhas chilenas são vendidas em diversas e chamativas cores, e muitas delas vêm enroladas em carretéis igualmente coloridos. Isso, aliado ao baixo custo, fez com que esse tipo de linha se disseminasse rapidamente não só entre as crianças, mas também entre adolescentes e adultos, apesar de sua venda ser proibida por lei em diversas cidades. Em âmbito federal, caminha a passos lentos a tramitação do projeto de lei 5.834/13, que visa proibir a comercialização, importação, uso e fabricação de linhas cortantes no território brasileiro, apesar de não haver, no referido projeto, ao contrário do que prevê o texto, previsão de punição para o uso.
Enquanto não há legislação capaz de impedir, por si só, essa prática danosa, cabe a nós tentar conscientizar os adultos praticantes sobre os riscos do uso de cerol e linha chilena, e suas eventuais consequências. Com relação aos adolescentes e, principalmente, às crianças, cabe aos pais - que podem responder solidariamente em caso de ferimentos ou morte praticados por seus filhos - a missão de impedir que sua prole utilize cerol e/ou linha chilena. Sabe-se que muitos pais, inclusive, são os financiadores dessa brincadeira por vezes mortal.
Em tempos de diversões tecnológicas e de enclausuramento social, em que muitas crianças têm seus espaços de diversão restritos, o hábito de soltar pipas poderia ser visto como uma alternativa saudável aos atuais videogames e jogos eletrônicos. Mas até que tenhamos uma legislação efetiva que regule o assunto e até que as pessoas se conscientizem sobre os perigos do uso de linhas cortantes, só nos resta relembrar, com saudosismo, do tempo em que soltar pipas era somente uma saudável brincadeira ao ar livre.
*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas
Email: hericklimoni@yahoo.com.br