A CATRACA É LIVRE, MAS NÃO É A MESMA

*Por Herick Limoni

Não! Definitivamente esse não é um texto contra ou a favor daquela organização que pratica o chamado jornalismo social.

Mas antes e principalmente para adentrar ao assunto central que irei abordar preciso fazer uma confidência: eu também já burlei catraca de ônibus. Digo também porque sei que muitos dos leitores desse texto irão se identificar com o que acabei de confessar e, talvez, somente talvez, lá no fundo de seus inconscientes também irão admitir, não sem certa dose de culpa que também o fizeram– e para os mais experientes, talvez até certa dose de saudosismo.

Na transição entre a minha adolescência e a fase adulta – mais ou menos dos 13 aos 17 anos – eu, como muitos jovens daquela época, trabalhava como office boy, profissão praticamente extinta e substituída pelos atuais motoboys.

Como não andávamos de moto (a vida não era tão fácil como hoje, se bem que a vida dos motoboys não tem nada de fácil), tínhamos de nos contentar em andar de ônibus e, em ocasiões especialíssimas, de táxi. Não havia Uber e nem Cabify. Ao sairmos da empresa para as tarefas do dia, a (o) funcionária (o) responsável nos passava os locais que deveríamos ir, e a quantidade de vales-transportes de acordo com o total de ônibus que seriam necessários para chegar ao destino traçado. Para você, leitor da geração Z, talvez seja necessária uma explicação: vale-transporte era um pequeno pedaço de papel, com cerca de seis centímetros de comprimento por três centímetros de largura, que lhe possibilitava utilizar o transporte coletivo sem utilizar dinheiro. Era confeccionado em várias cores e valores, e cada qual era utilizado em sua respectiva linha. Assim como o office boy, não existe mais. Foi substituído por cartões.

Retomando o raciocínio, naquela época as passagens custavam entre 0,20 e 0,35 centavos de real. Isso há mais ou menos 25 anos. Levando-se em consideração que o tíquete médio das passagens de ônibus gira hoje em torno dos R$ 4,00, temos, nesse tempo, uma variação de quase 1500%. Parece pouco, mas em vista da qualidade do serviço prestado, chega a ser um absurdo.

Além de servir para pagar a passagem, o vale-transporte também era utilizado para muitas outras coisas, sendo sua segunda função primordial a aquisição de produtos nas lojas, lanchonetes e barracas de ambulantes. Além de pacotes de salgadinho e pipoca, invariavelmente eu os utilizava para alimentar o vício no cigarro, recém adquirido e que, graças ao bom Deus, consegui me livrar 16 anos depois. Mas para isso era preciso burlar o cobrador e a catraca dos ônibus. E aí entra um pouco da magia daqueles tempos.

Àquela época, embarcávamos nos ônibus pela porta traseira, e o cobrador ficava bem próximo a essa porta. Como quem não queria nada, eu me sentava na parte de trás e ali permanecia, até que, ao chegar ao ponto de desembarque desejado, esperava a porta se abrir para a entrada de outros passageiros e zapt. Como um jovem Usain Bolt tupiniquim, disparava porta afora e saía em desabalada carreira para economizar aquilo que, instantes depois, iria me render pelo menos três cigarros avulsos ou dois sacos de pipoca. Não eram raras as vezes em que, no ponto desejado, não havia passageiro para embarcar e, invariavelmente, eu tinha de desembarcar alguns pontos depois. Não importava. Com a energia peculiar da juventude, valia o esforço de caminhar alguns quarteirões a troco de uns poucos centavos.

Ao me recordar disso agora lembro perfeitamente da adrenalina que toda essa “operação” gerava. Era como se estivesse prestes a cometer um crime (ainda que soubesse que aquilo era, de fato, ilegal). O coração disparava, a boca ficava seca e as pernas tremiam só de imaginar em ser pego pelo cobrador e, pior, se aquela traquinagem chegasse ao conhecimento de nossos. Seria o fim!

Hoje, o embarque é realizado pela porta dianteira, onde também fica o cobrador. Em um espaço reduzido, em que os assentos são reservados para idosos, gestantes e deficientes, não é raro observar uma multidão que ali se espreme com o único fim de burlar a catraca. Por vezes, há mais passageiros naquela parte do que no restante do ônibus. Todos ali, objetivando economizar alguns reais pelos mais diversos motivos. E os motoristas e cobradores, cuja “autoridade” também se perdeu no tempo, tal qual a de muitos pais e professores, nada podem fazer, a não ser abrir a porta e deixar que desçam sem pagar a passagem.

Todos, ao fim e ao cabo, somos burladores de catraca, não importa a época. Com a diferença crucial de que burlar a catraca hoje não tem o glamour, o romantismo e a adrenalina de outrora. Bons tempos!

*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas

Email: hericklimoni@yahoo.com.br