Verdade, verdades e interpretações - CARLOS FERNANDO GALVÃO.

Mede-se a inteligência de uma pessoa pela quantidade de incertezas de que ela é capaz de suportar.

Immanuel Kant ( 1724-1804), filósofo alemão

Para Nietzsche e Foucault, não existiria a verdade em si e o real seria apenas um ponto de vista.

No campo político, o que se chama de verdade é, não raro, tão somente um instrumento para a legitimação e para a autoperpetuação do poder.

Verdade é a propriedade de fato ou pessoa estar em conformidade com a realidade, o que faz dela uma representação do que é interpretado e aceito, universalmente, como real, ainda que nem sempre o seja.

Verdade é, assim, em certo sentido, mais do que aquilo que é mostrado, senão o que está oculto.

Ao enunciar uma "verdade", estamos emitindo um juízo de valor sobre algo ou alguém, mas as qualidades e as características de pessoa ou coisa estão no sujeito que as representa, para além de estarem, intrinsecamente, no objeto representado.

Existe, isto posto, meia verdade? Bom, até existe, mas o problema dela é que temos que desmistificar a metade mentirosa, separando-a da metade verdadeira e, por justo, admitir esta última.

Isso nem sempre é fácil. Aliás, quase nunca é. Podemos dizer uma mentira integral, contando apenas verdades parciais. A frase de Kant, que abre este artigo, serve para nos lembrar que desvendar as "verdades" que nos foram contadas, subjetiva e socialmente falando, é sinal de inteligência, além de atitude absolutamente necessária.

Alguns dizem que a história nada mais é do que a narrativa dos vencedores. Verdade, se aceitarmos as premissas que nos são impostas pelos grupos sociais hegemônicos, sem questionamentos; mentira, se percebermos que a vida é muito mais ampla e complexa do que o que esses grupos tentam nos fazer acreditar. Vejamos um exemplo.

Os ditos "analistas de mercado" dizem que não há caminho alternativo à taxação maior dos trabalhadores e ao aumento de seu tempo de contribuição; só assim o deficit da Previdência Social, que oscila em estimativas entre R$150 e R$200 bilhões, seria coberto.

Por outro lado, o custo do Programa Bolsa Família foi orçado em R$ 30 bilhões (dados de 2016). Mas se observarmos que os benefícios ofertados para as grandes empresas, que compõem a chamada "Bolsa Empresário", atingem cifras entre R$ 220 e R$ 270 bilhões e que o que se paga de juros da dívida pública, nunca auditada, vai chegar, em 2016, a R$ 600 bilhões, torna-se fácil perceber que não precisa haver o deficit previdenciário alegado, tampouco que os programas de assistência social são inviáveis.

Essas são meias verdades que, destrinchadas, constituem a mentira de que não temos alternativas.

A questão é mudar as prioridades políticas, mas isso não acontecerá enquanto a população não perceber os engodos que lhe são "vendidos" e não tomar para si as rédeas do poder político, sem violência, mas com firmeza; analisando as versões impostas e não apenas as aceitando, dogmaticamente.

Não há fato prévio e consumado na história e na geografia humana.

Não é exagerado afirmar que não existe "verdade", mas "verdades", tantas quantas puderem ser extraídas, de modo interpretativo, de uma sentença, refira-se ela a algo ou a alguém.

É possível haver mais de uma verdade sobre fato, pessoa, coisa, fenômeno ou acontecimento.

Essas verdades podem ser negociadas, ainda que por pessoas que pensem de modos distintos, desde que haja respeito mútuo, boa vontade para a negociação e honestidade ideológica e intelectual de todos os envolvidos nessa negociação.

A busca por verdades pactuadas é desejável e atingível; a busca pela "veritas" (latim) ou "aletheia" (grego) não é uma panaceia utópica, é uma necessidade vital e inadiável.

Não podemos mais permitir que "pseudo-verdades únicas" guiem nossas vidas. A virtude está na ponderação, não na imposição. O ser humano é complexo demais para ser formatado em uma planilha eletrônica ou em uma única versão de cidadania.

CARLOS FERNANDO GALVÃO é geógrafo, doutor em ciências sociais e pós-doutorando em geografia humana