Não se falar sobre um problema não o faz desaparecer.

Este relato tem o objetivo de abrir o diálogo sobre a importância da adesão ao sistema de cotas nos concursos públicos da Prefeitura de Santana de Parnaíba.

Eu estudei toda a minha trajetória em colégio particular. Passei, com 17 anos, na UFAL – Universidade Federal de Alagoas – para o curso de Administração. Trabalho nesta prefeitura desde 2011, passei na 9° posição para Analista em Gestão Pública e é deste lugar que eu falo.

Não sendo historiador, vou me esforçar para elencar cronologicamente a evolução do tema Raça no Brasil. Depois de mais de 350 anos da admissão da escravidão pelo governo brasileiro, a Lei Áurea – 13 de maio de 1988 – foi assinada pela Princesa Isabel. Isso decorreu de várias pressões internas e externas.

Das externas, eu destaco a ameaça de boicote pelo governo Inglês, que àquela época vinha se industrializando e precisava de trabalhadores para suas fábricas e consumidores assalariado para seus produtos. Internamente, destaco, entre outras, a revolução dos Malês (escravizados islâmicos) – 1935 – e os esforços do Advogado provisório Luiz Gama (nasceu livre e foi vendido como escravo pelo pai como pagamento de dívidas de jogo). Alfabetizado por um inquilino da pensão de seu “senhor”, tornou-se grande conhecedor de leis e conseguiu conquistar sua liberdade provando ter nascido um “negro livre”. Já em liberdade, conseguia provisões para advogar e com isso libertou pelo menos 500 escravizados.

Com a abolição, quase um milhão de negros conquistaram sua liberdade e foram jogados à sua própria sorte. Nem a regulamentação da Lei nem a indenização foram implementadas; ao passo, o governo brasileiro indenizou sim os proprietários de escravos, sendo essa a primeira cota instituída no Brasil para ajudar uma classe a se reerguer socialmente.

As ideias de eugenia e conselhos embasados em uma teoria de supremacia racial convenceram o governo a pôr em prática um processo de desqualificação da mão de obra negra e de embraquecimento do povo brasileiro.

Para isso, o governo brasileiro estipulou a segunda cota, esta Racial de origem, subsidiando passagem e oferecendo terras para estimular a imigração italiana – branca e católica – com a intenção de – em cem anos – a população negra, privada de acesso aos serviços públicos e preterida no mercado de trabalho, fosse extinta e “naturalmente” o Brasil se tornasse uma nação branca com forte influência da cultura europeia.

Sabemos que tal projeto fracassou, muito atribuído pela miscigenação das raças e pela resistência tão conhecida da população negra.

Contudo, tais esforços institucionais criaram um círculo vicioso de pobreza, fracasso escolar e marginalidade social.

Cito também outra cota oferecida pelo governo brasileiro, trata-se da Lei de Encilhamento, que, com o pretexto de subsidiar os grandes proprietários de terras, estimulou empréstimos e grande circulação de dinheiro – daí vem o provérbio “A Salvação da Lavoura” - Esse dinheiro foi muito usado para enviar filhos da oligarquia do café a países europeus a fim de obterem formação de qualidade e aprendizado de línguas. Esses fatos podem ser facilmente identificados na alta literatura nacional, tal como no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

A evolução política conturbada do Brasil, passando pela ditadura Vargas e a ditadura militar, a comoção pela morte do Presidente eleito Tancredo Neves e o impeachment do Presidente Fernando Collor adiaram a discussão sobre a reparação às políticas discriminatórias adotadas pelo Estado.

Autores como Paulo Freire e um esforço de nossos diplomatas em levar para o exterior a falácia de uma “Democracia Racial”, que deveria ser tomada como exemplo, somaram forças no emudecimento da discussão do tema.

A primeira virada nesse jogo se deu quando estudiosos norte americanos vieram ao Brasil aprender conosco como resolver seu problema racial. Todavia, saíram sem respostas e convictos de que o Brasil não era um modelo a ser seguido.

A segunda virada se deu quando o então Ministro das Relações Exteriores – Fernando Henrique Cardoso – foi convidado a repensar suas colocações quando, em uma reunião com embaixadores no Itamaraty, levantou a questão do problema racial no Brasil (do qual é um dos principais estudiosos).

Anos depois, já como presidente, pôs em prática suas ideologias criando o GTI - Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra – que, entre várias propostas, implementou:

A inclusão crescente da população negra na publicidade governamental, segundo conceitos de valorização da diversidade;

Inclusão de Zumbi na galeria dos vultos históricos brasileiros;

Núcleo de Combate à Discriminação no Emprego e Profissão;

Palestras sobre a saúde da população negra.

O GTI foi o embrião da criação da SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – e do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010).

Quanto às cotas para universidades públicas federais, o alerta foi dado com o caso do estudante Arivaldo Lima Alves da UNB – Universidade de Brasília – conhecido como o Caso Ari.

Em 1998, Arivaldo Lima Alves, estudante do curso de doutorado do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB), foi reprovado em uma disciplina obrigatória. Em 20 anos daquele programa de pós-graduação, foi o primeiro aluno a ser reprovado. O aluno pediu revisão de nota e o professor lhe disse que quantas vezes ele pedisse revisão, seriam as vezes que ele o reprovaria. Dois anos após a reprovação, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão forçou o departamento a rever a menção e Arivaldo foi aprovado.

Em 2004, a UNB foi a primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas raciais.

A Lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012 (segundo mandado do Presidente Lula), que Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, foi então instituída. Regulamentada pelo Decreto nº 7.824/20012 e pela Portaria Normativa nº 18/2012 do MEC.

Resumidamente, As vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) serão subdivididas — metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com a questão da educação analisada, outro problema surgiu: onde esses bacharéis iriam trabalhar?!

Não é coincidência que a maioria da população carcerária e das periferias seja negra, é tudo uma construção social de manutenção de privilégios.

Em sua tese de doutorado à Universidade de São Paulo – USP – a Psicóloga Lia Vainer Schucman discutiu os privilégios de ser branco com o tema Entre o 'encardido', o 'branco' e o 'branquíssimo': raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana.

Em um recorte emblemático do estudo, um morador de rua branco elenca seus privilégios obtidos pela cor de sua pele, mesmo estando em situação de extrema pobreza. Ele afirma que os seguranças do shopping o deixa usar o banheiro, já ao seu amigo, que é negro e também mora na rua, é negada esta regalia.

Em uma citação na conclusão do trabalho, expõe-se: “A identidade racial é construída nas sociedades contemporâneas como lugar de privilégios materiais e simbólicos em que sujeitos considerados brancos trafegam soberanos, em sociedades estruturadas pelo racismo, delimitando assim fronteiras hierarquizadas entre brancos e outras construções raciais”.

Em 2015, foi investigado o genocídio da população jovem e negra em CPI. – . COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO SOBRE HOMICÍDIOS DE JOVENS NEGROS E POBRES –. Em seu relatório conclusivo, constata-se que 73% dos jovens (14 a 27 anos) assassinados no Brasil são de negros. Citações como:

“O racismo no Brasil é tão inteligente, e, acrescentamos, insidioso, que convence a alguns que ele sequer existe”;

“O aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de si mesmo uma imagem de maior socialidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido”;

Conforme dados do executivo do município de São Paulo (fev/2014), dos 337 procuradores da Prefeitura de São Paulo, somente 4 eram negros (1,19%). Uma realidade só comparável com países europeus.

De acordo com dados do último censo (IBGE-2010), em Santana de Parnaíba, trabalhadores remunerados de pele amarela ou branca somam 21.913 indivíduos; os de pele preta ou parda somam 16.676. A disparidade (não coincidência) se dá quando comparamos a renda desses trabalhadores. São 20.116 indivíduos de pele amarela ou branca com renda superior a 5 salários mínimos (quase a totalidade), já os de pele preta ou parda com renda superior a 5 salários mínimos não soma 800 indivíduos.

Eu acho esses números alarmantes e vocês?

Por tudo isso, eu peço – em caráter de urgência – que seja adotado o sistema de cotas nos concursos públicos realizados na Prefeitura de Santana de Parnaíba. Seguindo decisão de outras cidades do estado de SP, do próprio Governo Estadual e do Governo Federal.

Também proponho que seja criado um órgão e um conselho de promoção da igualdade racial na estrutura administrativa local. Contando com essas duas instâncias, a Administração poderá solicitar oficialmente sua adesão ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), enviando os documentos estabelecidos na Portaria SEPPIR n.º 8/2015. Aos moldes de municípios como São Paulo, Campinas, Embu das Artes e Osasco.

A efetiva implementação da Lei 10.639, de 03 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", nas escolas municipais de Santana de Parnaíba;

A admissão pelo município do feriado da Consciência Negra – 20 de Novembro.

Esperando ver o assunto em pauta e a mobilização social e política para que essas propostas tornem-se reais, encerro este relato confiante no engajamento dos destinatários.

Deus honre a todos,