A BOLSA OU A VIDA

 
Alguém se apossa de um objeto meu, adquirido com o esforço de muitos anos de trabalho e de grande valia para minhas atividades cotidianas.  Documentalmente sou proprietário daquele objeto, porém fico sem mais poder beneficiar-me de sua utilidade.  O indivíduo que dele se apossou, embora ilegitimamente, passou a se considerar o seu novo dono, por conta de um arriscado esforço de muitos anos de treino na rapinagem.  Ele já sabe que suas vítimas são orientadas a não reagir.  
  

Dependendo das circunstâncias em que o objeto me tenha sido usurpado, seu valor pode crescer ou decrescer. 
Assim:
- se fui trapaceado e não me senti ameaçado, é claro que parto para a luta com todas as minhas forças para reaver o valorizado bem usurpado;  para alcançar esse objetivo, poderei até mesmo contar com o auxílio de autoridades policiais, que, como cidadão, o estado coloca à minha disposição;  neste exemplo, minha luta será tanto maior quanto for o valor que eu venha a atribuir ao bem que ora me faz falta;  lutarei por ele enquanto não estiver ameaçado fisicamente;  
- outra forma de abordagem é quando sou obrigado a entregar o bem de minha propriedade sob ameaça de morte, caso não ceda. Nessa condição, minha luta será do tamanho do novo valor por mim atribuído ao referido objeto.  Ou seja: não haverá luta pelo amor que tenho à vida e por minha opção de considerar insignificante o objeto desejado pelo meu algoz.  De que valem um carro, joias raras, ou um cofre abarrotado de dinheiro em relação à minha vida?...  A decisão é óbvia: a vida supera a valoração de todas as coisas, por imprescindíveis que sejam. 

As reações muitas vezes se contrapõem às regras comportamentais a serem seguidas nos casos de abordagens ameaçadoras.  A propósito, transcrevo, a seguir, o prólogo do livro “As mulheres da China” (Xinran), uma breve história que a autora conta como verídica:

““Às 9 horas de 3 de novembro de 1999, eu estava a caminho de casa, depois de dar uma aula no curso noturno da School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres.  Ao sair da estação de metrô de Stamford Brook para a escura noite de outono, ouvi um som rápido atrás de mim.  Não tive tempo de reagir e alguém me bateu com força na cabeça e me jogou no chão.  Instintivamente, segurei firme a bolsa, onde estava a única cópia de um manuscrito que eu acabara de escrever.  Mas meu agressor não se deixou demover.  “Dá a bolsa”, gritava sem parar.  Resisti com uma força que não sabia que tinha.  No escuro não conseguia enxergar um rosto.  Só estava ciente de que lutava com um par de mãos fortes, mas invisíveis.  Tentei me proteger e, ao mesmo tempo, dar-lhe um pontapé no ponto onde achei que ficasse a virilha.  Ele chutou de volta e senti uma dor aguda explodindo nas costas e nas pernas, e o gosto salgado de sangue na boca.  Passantes começaram a acorrer aos gritos.  Em pouco tempo o homem foi cercado por um grupo enfurecido.  Quando me pus de pé, cambaleando, vi que ele tinha mais de um metro e noventa de altura.  Mais tarde a polícia quis saber porque eu tinha arriscado a vida por uma bolsa.  Tremendo e dolorida, expliquei: “É que o meu livro estava dentro dela”.  “Um livro!?”, admirou-se o policial.  “Um livro é mais importante do que sua vida?”  Claro que a vida é mais importante do que um livro.  Mas, em muitos sentidos, o meu livro era a minha vida.  Era o meu depoimento sobre a vida de mulheres chinesas, o resultado de um trabalho de muitos anos como jornalista.  Eu sabia que tinha sido imprudente: se tivesse perdido o manuscrito, poderia ter tentado reescrevê-lo.  Mas não tinha certeza se seria capaz de enfrentar novamente as emoções extremas provocadas pela redação do livro.  Fora doloroso reviver a história das mulheres que eu tinha conhecido, e ainda mais difícil pôr as minhas lembranças em ordem e encontrar uma linguagem adequada para expressá-las.  Ao lutar pela bolsa, eu estava defendendo meus sentimentos e os das mulheres chinesas.  O livro era o resultado de muitas coisas que, caso se perdessem, jamais poderiam ser reencontradas””...

Afinal, o que é a vida em sua escala de valores?  Pode a vida ser empenhada em defesa de uma causa nobre?
Deixo a  análise e as respostas a seu critério, caro leitor.        
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 12/12/2016
Reeditado em 12/12/2016
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