ACRAMAL - UM APRENDIZ DE CANGAÇO E A NATUREZA VIVA.
ACRAMAL – UM APRENDIZ DE CANGAÇO E A NATUREZA VIVA
autor: José Rodrigues Filho
Foram momentos difíceis, aqueles que antecederam o pouso que ora fazemos. Momentos que marcaram a nossa espinhosa odisseia com a expectativa da morte e a perspectiva de sobrevivência, desde aquele dia 25, até hoje.
Era, mais ou menos, meio-dia de um domingo de maio, o sol estava a pino e castigava, rudemente, nossas cabeças e membros superiores. O calor era infernal, parecia que o astro-rei estava disposto a castigar, com toda sua potência calorífica, àqueles que, como nós, ousavam penetrar profundamente nas inóspitas terras do Raso da Catarina. Entretanto, aquela não era a primeira vez que adentrávamos pelas insalubres paragens dessa região temida, abrasada por um sol causticante e cheia de perigos que rastejam, silenciosamente, por entre plantas das famílias Bromeliácea e Cactácea, sob a forma de peçonhentos répteis de espécies diversificadas sendo o mais comum o temível cascavel cuja picada é mortal se não, suficientemente, tratada em tempo com uso de soro antiofídico; medicamento escasso por esses sertões bravios.
A vegetação composta, em sua maioria, por arbustos e subarbustos herbáceos acumula em sua copa, de baixo porte, um calor de incubadeira: próprio para eclosão de ovos de aves de “arribação” ou avoantes. As macambiras, com suas folhas dotadas de espinhos afiados em ambas as arestas, se nos apresentavam como barreiras quase que intransponíveis, tais eram as dificuldades de se avançar apenas alguns passos na direção pretendida.
O solo arenoso ardia sob nossos pés. E à mossa volta formava-se um mormaço quente criado pelos efeitos da irradiação solar, responsável direta pelo calor que caracteriza a temperatura do Raso, durante o dia.
Apesar de todas as agruras e sofrimentos experimentados, uma esperança nos dava forças especiais para avançarmos. Pior, do que todo martírio que enfrentávamos, seria cair nas impiedosas mãos dos agentes federais e estaduais que haviam descoberto nossa pista, quando há seis dias passávamos por Jeremoabo, numa tentativa de iludir nossos perseguidores. O ardil não dera resultado e, prontamente, estávamos com os meganhas em nossos calcanhares, chefiados pelo truculento e sádico delegado conhecido por Yruelf, um torturador contumaz a serviço do imperialismo e das classes dominantes. Portanto, desta feita, a árdua penetração pelas veredas naturais do Raso da Catarina, tinha um sabor de passeio, malgrado a tensão nervosa a que estávamos submetidos.
Nossas provisões eram compostas apenas por sal e água, sendo esta última o elemento vital para quem ousa aventurar-se Raso a dentro; e, é provável que tenha sido esta tática que fez malograr os planos de captura elaborados pelos celerados de farda que nos perseguiam. O racionamento de água foi a primeira medida: água, apenas, para molhar a garganta e os lábios, nada de desperdícios. Para comer, nesse deserto, o cardápio é variado: tatu, teiú, preá, “calango”, aves de arribação e, vez por outra, um petisco de cascavel assada.
Com dificuldades avançamos na direção colimada. Já faz cinco dias que estamos embrenhados neste santuário dos sertões, e, de acordo com a nossa posição, com mais três dias de caminhada atingiremos o nosso ponto de apoio, localizado às margens do riacho do meio, pequeno afluente do Vaza Barris.
Agora é noite, a temperatura que inferniza o Raso, durante o dia, é no momento bastante fria. O solo perde calor com grande rapidez o que ajuda na contenção dos gastos com água. Nesse instante, certos de que despistamos Yruelf e seus comandados, preparamo-nos para comer, no jantar, um belo exemplar de cascavel: abatida à tardinha, quando atravessava, mansamente, a tortuosa trilha natural por onde passávamos. Enquanto nos posicionamos, em volta do fogo, para a primeira refeição do dia, nos assaltam a memória: lembranças vivas de Lampião e seus homens, os quais tantas vezes sentaram-se ao redor da fogueira, após dias e dias de marcha pelas veredas do Raso, fugindo daqueles que, respaldados na iniquidade de uma justiça vendida, eram, como Yruelf e seus asseclas, quem deveriam ser justiçados.
Texto publicado no Jornal Komunikando, Feira de Santana - Ano VIII, Nº 49, abril de 1987.
Obs: Devido aos resquícios da repressão, naquela época, os nomes de Acramal e Yruelf foram grafados de trás para frente.