A cantora lírica do primeiro andar
Já se vão 35 anos que a conheço, tivemos, como todo bom vizinho, em Brasília, “largos momentos de conversa”:
- Olá, tudo bem?
- Tudo. O dia hoje está mais quente etc.
Bom, que se diga que esses “longos diálogos” sempre ocorrem no elevador ou na garagem do prédio.
Há muitos anos, ela me convidou para fotografar uma flor de cacto que cultivava numa jardineira, em sua janela. Foi o máximo de aproximação que tivemos. Eu amei.
De outra feita, ela subiu ao meu apartamento, que estava em reforma, para saber quando terminariam as batidas, pois ela precisava agendar consultas , creio que ela ajuda pessoas com problemas.
Mas o que me leva a escrever sobre a Liane, este é o seu nome, é a sua voz bonita. Ela é uma cantora lírica. Nesses trinta e tantos anos, sua voz ecoou pela quadra, sempre solfejando trechos de óperas, lindos. Seus autores prediletos são também os meus: Verdi, Puccini, Rossini, os italianos.
Contudo, nos últimos meses, observei que ela não tem cantado. E num dos nossos encontros no elevador, perguntei:
- Você está bem? Não tenho ouvido mais o seu cantar...
Ao que ela respondeu quase num sussurro:
- Os moradores reclamam do barulho.
Confesso que eu fiquei sem ação, desde quando canto lírico é barulho? Como não gostar de um trecho de Rigoletto, de Turandot, do Barbeiro de Sevilha, de Aida, de Nabuco, de Madame Butterfly?
O mundo mudou mesmo. Os valores culturais, morais e familiares, foram deturpados, violentados brutalmente, reclamar pra quem? A vulgaridade tomou conta de todos os segmentos da sociedade.
E enquanto eu escrevia este artigo, um carro parou no estacionamento do meu bloco tocando uma música alta, cujos versos vulgares e imorais envergonham quem ouve. Os vizinhos não reclamam disso por que? Mas não devo generalizar, com certeza, não são todos moradores a reclamar do canto lírico.
Não se cale Liane. Volte a alegrar seus vizinhos com sua voz bonita, com seu cantar tão belo, não deixe a vulgaridade vencer.