( Poucas mães ou filhos irão ler esse texto ( por causa da "resistência de mudança da mente" )...mas todas(os) deveriam...)
 
UTOPIA E PAIXÃO: A MÃE!
 
Nessa busca de articulação dos raciocínios psicológico e político, cada vez ficamos mais convencidos da importância de se mudar a estrutura da sociedade além de sua economia. Muitas revoluções foram feitas, mas o autoritarismo do Estado sobrevive graças, em grande parte, a enormes obstáculos ao exercício da liberdade humana, entre eles o autoritarismo familiar.
Como já dissemos antes, temos de mudar a visão de que o monopólio do poder dentro da sociedade é do Estado. Ele é a máscara, escondendo todas as ramificações sociais do poder, que tem na família um de seus principais centros de difusão.
Uma nova estrutura familiar é fundamental para uma nova sociedade. Outras classes ou grupos sociais podem assumir o controle do Estado, mas isto não é garantia para que a sociedade se transforme e nem mesmo o próprio Estado se reconfigure — ele se mantém autoritário. A economia pode-se transformar, mas a sociedade não necessariamente. Nas experiências socialistas, a
democracia também não chegou à família e cada vez mais se afastou das fábricas. Sempre foi assim. O próprio Lênin tinha um grande fascínio pela forma de organização da grande fábrica  capitalista. Existem alguns artigos seus mostrando as maravilhas da empresa capitalista e apelando para a necessidade de organizar a empresa no socialismo da mesma maneira.
A economia se transformou, e entretanto a sociedade
manteve as suas bases autoritárias, reforçadas por um partido único que foi engolido gradativamente por um Estado centralizado e militarizado, que despolitiza a sociedade, sugando a sua alma política, para que assim, mais, eficientes se tornem as rédeas do poder.
Mas, voltemos à família. Sobre a crise do socialismo já alamos antes. Queríamos, agora, focalizar o papel da mãe na manutenção do autoritarismo da relação pais-filhos. É uma questão delicada. Por isso mesmo é melhor ir diretamente ao ponto, afirmando logo que consideramos o amor de mãe muito mais perigoso para a humanidade que todo o arsenal de armas atômicas. Estas armas servem às chantagens do jogo de poder internacional. Mas isto tudo é controlável, pois faz parte de um jogo mais ou menos ético e universal. No fundo, apesar de tudo, temos pavor, horror das armas nucleares. Agora, quanto ao amor de mãe, é justamente o contrário. Nós o veneramos. E é através dele que o autoritarismo penetra nas pessoas e provoca um outro tipo de desintegração. Em vez de nuclear, é uma desintegração bioenergética que nos torna dependentes e impotentes diante do autoritarismo, venha ele de onde vier, da família, do Estado, do céu e do inferno. Nós nos habituamos a viver com ele e não conseguimos mais viver sem ele: é a morte da originalidade, é a impotência e incompetência para a liberdade.
O amor de mãe de que falamos é aquele desenvolvido acima do necessário, acima do biológico, acima do real, acima do amor.
O amor de mãe que é necessário, que todo mundo precisa e nós  não podemos viver, realmente, sem ele, é o amor de base mamífera. Freud, sempre muito trágico, não percebeu a ludicidade gostosa de nossa primeira paixão ontológica.
O “excesso” de amor do tipo “mãe” ou do tipo “complexo de Édipo” enfraqueceu o homem de tal forma que ele aceita o poder, a dominação, a injustiça social, as armas nucleares, enfim, todas as faces do autoritarismo. Ninguém nasceu autoritário. O ser
autoritário se produz através de um processo pedagógico que começa nas relações afetivas familiares.
É importantíssimo desmitificar a “mãe” tanto quanto Freud fez com a “criança”. Quando ele disse que a criança tinha uma sexualidade dirigida em relação à mãe, ocorreu um grande escândalo. Não se admitia isso porque a criança era sinônimo de anjo e pureza.
Para além do verdadeiro amor de pai e mãe — uma coisa absolutamente saborosa, insubstituível, maravilhosa — existe uma degradação deste amor. Os pais e as mães não sabem que muitas vezes estão trabalhando a serviço do poder do Estado para destruir nosso poder de contestação, de identidade pessoal, de espontaneidade criativa. Estão impedindo que se realize plenamente o que eles próprios produziram em nós com o seu amor inconsciente e antropológico.
A sociedade requer dos pais, dentro da pedagogia da
opressão, o desempenho de papéis exercidos de uma maneira afetuosa, seguindo um esquema de chantagens afetivas. Aliás, nas relações mais tipicamente amorosas, em grandes e falsas paixões,nós acabamos exercendo chantagens afetivas que subordinam aoutra pessoa ao nosso autoritarismo, e ela responde a isso sefazendo de vítima, o que é outra chantagem, igualmente autoritária e poderosa.
Shakespeare conseguiu passar essa imagem, essa idéia, mostrando como o poder familiar, a competição pelo poder entre as famílias torna impossível a felicidade amorosa dos filhos. Não se pode amar porque não se estabeleceu um acordo político de poder entre as famílias. E se insistirem em se amar, vão ter de se destruir. A peça Romeu e Julieta fala com clareza disto: os dois se matam, se destróem porque não estão obedecendo à autoridade familiar, não conseguem se libertar dela, então dão-se à morte em lugar de ao amor. Nós odiamos a ideologia que está por trás dos belíssimos versos de Shakespeare.
É fácil vermos as relações autoritárias na atuação do Estado, da escola ou das chamadas instituições formais. Mas no caso da família, elas se escondem socialmente.
Sem dúvida, é uma grande arma ideológica essa, de se
esconder a opressão que passa através das relações afetivas.
Não falamos só da família chamada burguesa, o mesmo ocorre com as famílias mais pobres e proletárias. Estas, indiscutivelmente, estão cheias de problemas de trabalho, moradia, renda, emprego etc. São sérias dificuldades, socialmente impostas, que convivem com um rigor moralista às vezes muito maior que o da família burguesa. O paternalismo, na classeproletária, existe com uma força incrível.
A chantagem afetiva permeia toda a miséria imperante.
Temos certeza de que esta é uma das causas fundamentais da destruição da eventual energia revolucionária do proletariado junto com a degradação humana produzida pelas condições em
que se processa o trabalho no regime capitalista (e mesmo no socialismo burocrático).
As relações afetivas são, então, as típicas “relações
perigosas”. Por elas podem passar as maiores violências contra o ser humano. Contra os nossos inimigos, nós sabemos, de um certo modo, nos defender. Sentimos o cheiro deles, nos armamos e nos defendemos. Mas estamos indefesos contra as pessoas que amamos, nossos amigos, parentes, amantes. Estamos totalmenteabertos para eles, eles penetram em nós como quiserem, sejam quais forem suas intenções.
É uma contradição terrível: se não nos abrimos totalmente para receber o outro, nós não conseguimos amar. O amor não se faz com pedaços ou porcentagens. E se nos abrirmos inteiramente,estamos sujeitos ao risco de manipulação autoritária.
Essas manipulações, quando são próprias do amor, fazem parte do jogo amoroso, são lindas — manipulações lúdicas, dentro do jogo natural do amor. Agora, existem manipulações trágicas, que praticamos sem saber, sem querer e sem controle. Não hánecessariamente más intenções, geralmente achamos que estamos fazendo bem à pessoa amada, ao próprio amor, nessas manipulações. Mas, na verdade, estamos servindo de carrascos e
executamos amorosamente as liberdades, a serviço do Estado e da sociedade autoritária, que permanecem de mãos limpas e impunes nesses sombrios assassinatos ou genocídios cotidianos.
Quando dizemos “eu te amo”, quando nos dizem “eu te amo”, e nós acreditamos e fazemos acreditar sinceramente nisso, não percebemos que possa ser este o mesmo sentimento que levou o piloto norte-americano a apertar o botão que fez cair a bomba
atômica sobre Hiroshima, matando cerca de cem mil pessoas em poucos minutos e abrindo caminho para o genocídio final da humanidade, justificado pelo amor à liberdade em dois conceitos congênitos, embora ambos, historicamente, mentirosos e incompetentes. Hiroshima, meu amor não é apenas o belo título de um filme. A imaginação no poder. Poderíamos ser um dos pichadores dos muros de Paris, e maio de 1968. Teríamos sido os autores destas frases: “Sejamos realistas: exijamos o impossível.” Ou: “Esta noite, a imaginação tomou o poder.”
Queriam dizer os jovens parisienses, logo após a tomada da Sorbonne, que se tratava da imaginação utópica substituindo o realismo burocrático, de direita ou esquerda.
Talvez este livro não pretenda muito mais do que uma dessas frases ou o que pretendeu o próprio movimento dos jovens franceses em 1968. Um ressurgimento da imaginação utópica, em novas bases libertárias.
Os pensamentos e os projetos utópicos andaram muito desmoralizados quando cinqüenta milhões de pessoas precisaram ser mortas para varrer do mundo os projetos utópicos de Hitler e de Mussolini. E é profunda a decepção provocada pela realidade
burocrática e autoritária em que se transformaram, na UniãoSoviética, os projetos utópicos do Comunismo de Marx e Lênin.
Relendo as utopias clássicas de Platão (A república) e
Thomas Morus (Utopia), até George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável mundo novo), passando por Thomas Hobbes
(Leviathan), por Robert Owen (Livro do novo mundo moral), por
Saint-Simon (Carta de um habitante de Genebra a seus
contemporâneos), por Charles Fourier (O novo mundo amoroso) e por Pierre Proudhon (O que é a propriedade), portanto, do quarto século antes de Cristo, com Platão até o Manifesto comunista (1848) de Marx e Engels — mais precisamente, até a obra de Engels (Do socialismo utópico ao socialismo científico, 1878) — fica claro que a grande vocação dos utopistas era sonhar com umanova forma de organização social. Uma forma em que o dever seopunha ao prazer, o trabalho ao lazer, a disciplina à liberdade, o futuro ao presente.
Dentre os utopistas clássicos destacamos Charles Fourier, o
único a colocar o prazer como objetivo final da desalienação
sonhada por outros, como Marx. Síntese semelhante, agora em
termos contemporâneos, alcançou o pensador Herbert Marcuse,
na década de 60, associando Eros e Marx, como já fizera um dos
maiores utopistas deste século, Wilhelm Reich, na década de 30,
ao descobrir a importância do prazer (orgasmo) como instrumento
de libertação.
Ao refletir sobre o significado das utopias, chegamos à
convicção de que a imaginação utópica é inerente à natureza do
homem, embora as utopias possam ser tão variadas e diversas
como os homens que as produzem.
A palavra utopia foi proposta no século XVI, quando o inglês
Thomas Morus publicou em latim um livro sobre a vida melhor
levada pelos habitantes de uma ilha situada em algum lugar, a ilha de Utopia, de outopos: o não-lugar, lugar nenhum, nenhures.
Teixeira Coelho, em seu livro O que é utopia * lembra que a ligação entre vida melhor e lugar inexistente vem provar, desde Thomas Morus e desde sempre, que os poderes constituídos são contrários à plena realização humana e sistemáticos repressores da imaginação utópica. Na Inglaterra de Morus não existia liberdadede expressão e nem de pensamento, daí a fabricação de umapalavra para situar um lugar onde a vida seria melhor. Thoma Morus acabou decapitado, não por essa razão — é que, embora
não atacando seu rei, ele nada falou a favor desse mesmo rei.
* Aproveitamos as pesquisas históricas e algumas reflexões desse autor paralevar ao leitor conhecimentos básicos sobre utopia, de modo a poderdesenvolver, em seguida, nossas teses sobre material bem organizado didaticamente. Esse livro foi publicado pela Editora Brasiliense.
Todo pensamento ou projeto utópico é uma manifestação política, uma proposta idealista de organização social mais justa.
Em todas as utopias propunha-se (sempre, desde Platão) acabar com o trabalho escravo, embrutecedor, e que todos trabalhasse para que todos pudessem trabalhar menos. Está presente nelas o desejo de que todos sejam considerados iguais, homens, mulheres, crianças; que ninguém passe necessidade; que ninguém seja considerado superior pelo fato de possuir mais bens que os outros; que os mais competentes e honestos dirijam a coisapública. E, acima de tudo, que ninguém seja obrigado a fazer o que não quer, o que não pode e o que não deve. Que não existam o dinheiro e a propriedade privada. E que haja liberdade deexpressão e de religião, e educação acessível a todos. Cada utopista manifestou centenas de boas intenções em suas
propostas.
Do ponto de vista moral, acreditamos que a Declaração dos direitos do homem sintetiza bem o sonho utópico da sociedade contemporânea. Entretanto, como se sabe, é o mais violado e
desrespeitado de todos os nossos compromissos históricos.
É necessário ressaltar que as utopias, além de dispersas no espaço, também sempre estiveram fora do tempo -como um sonho mesmo. E todas baseadas em propostas que eram fruto do pensamento racional, organizado, ordeiro, controlador. No fundo,
as propostas utópicas assemelhavam-se, quanto à organização política da cidade ideal, a ditaduras no paraíso. Por essa razão, sempre se supôs que as propostas da imaginação utópica tradicional jamais levariam as pessoas a uma vida melhor. E o que
supomos também, por razões básicas contidas naquelas propostas:
1) a consciência racional prevalecendo sobre a
consciência da intuição, do sentimento, da sensibilidade;
2) o d
ever e o controle antecipando e sobrepondo-se ao prazer e à liberdade.
Quanto à primeira razão, temos trabalhado bastante em cima dela neste livro. Todas as utopias tradicionais falam de urna "nova ordem”, expressão freqüente, por exemplo, em textos e teorias fascistas. E mais: se aquelas utopias se concretizassem, a vida seria, no mínimo, muito chata. E. M. Ciora, que escreveu a história da utopia, afirmou: “As utopias são chatas porque permitem apenas idílios geométricos e êxtases regulamentados”.
Utopia racional, controlada, fruto da ordem, disciplinando o prazer e a liberdade, evidentemente é algo contraditório ou — o que é bem mais grave — trata-se da parte ilusória e propagandística dos projetos autoritários que, uma vez acionados,produziram os grandes holocaustos da História, Tais propostas eram lugares-comuns nos discursos de Hitler, Goebbels, Goering e Stálin. E foi a partir desses modelos de projetos utópicos que George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável mundo novo)negaram as utopias e nos advertiram sobre seus riscos.
Num outro sentido, Engels e Marx criticaram fortemente os  socialismos considerados por eles como utópicos, embora o comunismo — no qual deveria desembocar o socialismo por eles propostos possa ser considerado hoje a maior utopia contemporânea.
Assim chegamos à segunda razão para o fracasso das
utopias racionais: o medo e, conseqüentemente, o combate ao prazer, à liberdade sexual. Todos os utopistas foram moralistas hipócritas, autoritários, castradores e repressores conscientes do uso livre dos prazeres da vida, inclusive o sexual. Já citamos a
exceção que foi Fourier. Ele vai deixar de se preocupar com o aspecto organizacional das utopias para ocupar-se dos sentidos e
sentimentos.
Chama-se Harmonia a utopia de Fourier, e o fundamental nela é o prazer. É uma comunidade que abriga pessoas das mais variadas preferências; e aqui, ao contrário de serem reprimidas, essas preferências serão estimuladas ao nível máximo de prazer,
sem prejuízo das outras pessoas. Não há a mínima restrição ao prazer. A prostituição coletiva é reconhecida e honrada. O dado que une as pessoas é a entrega às paixões.
Wilhelm Reich foi expulso do partido comunista alemão porque propôs a realização plena do prazer sexual do proletariado como principal mola revolucionária (além do trabalho e participação no Partido). Somente na década de 60, meio
esquecido de Reich, Herbert Marcuse (Eros e civilização e O fim da utopia) retomou a observação de Freud segundo a qual o amor é a mola da civilização, embora este admita também que a civilizaçãose faça pela repressão sexual. A proposta de Marcuse foi (e é) considerada herética pelas doutrinas revolucionárias oficiais, masos jovens que promoveram os movimentos libertários de 1968reconheceram nela, de imediato, uma saída para o impasse em que uma política tradicional e outra revolucionária, masburocratizada, haviam jogado a imaginação utópica — que não é,como se costuma pensar, uma fantasia, nem uma falsidade, nemalgo irrealizável ou em contradição com a realidade.
É necessário acrescentar que tal raciocínio sobre necessidades essenciais humanas não exclui a satisfação das necessidades básicas como alimento, teto, trabalho, saúde, escola etc. Tudo isso faz parte de qualquer utopia, mas, na maioria delas,Eros e a liberdade não tiveram lugar central. No caso, nossautopia é mais próxima de Reich. Sonhamos e lutamos por umasociedade onde a liberdade seja fruto da justiça e do prazer.
Algo de novo surgiu a partir do século passado, também para uma nova e atual compreensão do pensamento utópico, algo
baseado no conceito e projeto de revolução.
A partir da Revolução Francesa, os projetos utópicos podiam contar com a possibilidade de efetivação imediata, através de  transformações radicais das estruturas sociais e dos mecanismos de poder.
Das idéias utópico-revolucionárias surgidas depois da Revolução Francesa, destaca-se o programa socialista-comunista,cuja meta é a extinção do capitalismo. Várias utopias do tipo liberal, mas fronteiriças da revolucionária, a antecederam, como ade Robert Owen, a de Saint-Simon, a de Fourier, e a de Proudhon.
Porém é comum considerar-se que o socialismo propriamente dito despido de utopias, só tem existência a partir de Marx e Engels e
de sua teoria da luta de classes. Afirmam os autores do Manifesto comunista que a utopia rejeita ou dispensa a luta revolucionária.
O Brasil nos parece uma utopia mal realizada ou a realizar. Antes do nosso descobrimento, os índios guaranis possuíam urna utopia que os fazia migrar em direção ao Atlântico, imaginando existir no oceano uma cidade que realizaria todos os
seus sonhos. Ocorrido o descobrimento, viram chegar do oceano todos os seus males e então inverteram a ordem da migração.
Talvez a própria descoberta da América resulte de um sonho utópico. As cidades ricas dos incas encantavam os espanhóis como cidades utópicas. As reduções jesuítas estabelecidas no Paraguai desde 1588 funcionavam como verdadeiras cidades
utópicas para os europeus. Elas duraram até 1788.
No início de caráter religioso, messiânico, sempre existiram
no Brasil cidades utópicas, como Belo Monte (1873) na Fazenda de Canudos, chefiada pelo missionário Antônio Conselheiro. No Rio Grande do Sul, surgiu em 1872 o movimento messiânico dos Mucker (santarrão, em alemão). No final do século passado e
começo deste, esboçou-se em Juazeiro experiência análoga, com o Padre Cícero. Porém, mais características foram as utopias do tipo anarquista (socialismo libertário), com as experiências da Colônia Vapa, estabelecida por imigrantes letões em Assis (São Paulo), em 1930, e a da Colônia Cecília, de inspiração fourierista, em Palmeiras, no Paraná, em 1890.
O que caracteriza, no Brasil, essas experiências utópicas é a intolerância e violência das autoridades em relação a elas. Desde oQuilombo dos Palmares, exterminado em 1694, após 60 anos de
luta, todas as nossas experiências utópicas foram combatidas e dizimadas.
Como entendemos, então, a utopia que gerou a idéia deste livro? Utopia, para nós, significa esperança. Mas esperança de realizar nossos sonhos de justiça e liberdade social, e, simultaneamente, alcançar a plena e autônoma realização pessoal, aqui e agora. Uma ação revolucionária cotidiana, permanente, corporal, prazerosa, somática, através do encontro e
exercício livre da nossa originalidade única.
Portanto, para nós, a cidade ideal, o topos, já foi encontrada.
E nosso corpo, o soma de cada um. Nós não a encontrávamos porque a supúnhamos fora do espaço e do tempo, porque alienamos nosso corpo, porque o emprestamos, o alugamos, o vendemos, porque permitimos que se apoderassem dele e o
escravizassem. Então, movidos por uma espécie de banzo(saudade, em dialeto africano, da terra de origem) sonhamos com a utopia, julgando-a fora e longe de nós. Mas isso só é possível porque aprendemos a separar o eu do corpo e o pensamento da vida.
A descoberta do próprio corpo, através da realização livre do prazer, da unificação e harmonização energética, da liberação da uto-regulação espontânea, produz na pessoa a excitante e deslumbrante sensação de realização utópica. A convivência
consciente e lúcida com o próprio soma leva naturalmente à necessidade de suplementação da vida com os demais somas. Por isso, além da política do corpo, faz-se necessária sempre a política das relações cotidianas, ou seja, desarmar o jogo do autoritarismo que impede nossas utopias amorosas, criativas, em casa, na rua e no trabalho.
O mais precioso de nossa utopia é esse amor à luta, esta lúcida paixão por realizá-la e mantê-la ao nível de nosso próprio corpo, nas relações sociais em que estamos inseridos e nos movimentos sociais dos quais participamos. Luta e prazer são os caminhos e as armas para se atingir a utopia social. Na verdade,
quando se chega ao fundo da questão, descobre-se que a grande,a decisiva, a eterna utopia, a que tentamos decifrar e promover neste livro é realizar a identidade existente entre o eu e o nós.
 
Do Livro UTOPIA E PAIXÃO
Roberto Freire e Fausto Brito
 
 
 
Roberto Freire e Fausto Brito
Enviado por Tânia de Oliveira em 30/06/2016
Reeditado em 30/06/2016
Código do texto: T5683209
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