Muito além dos protestos e punições
O caso da menina de dezesseis anos estuprada por mais de trinta homens é extremamente revoltante para que o abordemos sem nos emocionarmos, visto que ela não foi apenas estuprada, mas também dopada, teve seu estupro filmado, foi desrespeitada na Delegacia, foi ameaçada de morte e muitos a trataram como se ela fosse a culpada pelo estupro. Este caso expõe um dos piores tipos de crime que pode ocorrer a um ser humano, que se vê atacado em sua dignidade, liberdade de dispor de seu corpo e ainda se vê olhado com suspeita, como se houvesse sido o causador da agressão (como se existisse justificativa para esse tipo de crime).
Devido à covardia do crime, já que a vítima não teve como se defender e ainda foi tratada de forma desrespeitosa pelas autoridades que deveriam lhe oferecer apoio, tem havido protestos pelo Brasil (nas ruas e nas redes sociais) e pelo mundo, exigindo a punição dos culpados e se posicionando contra essa "cultura do estupro", que culpa a vítima, apoiando-se no velho adágio machista que diz que "mulher assanhada pede para ser estuprada".
Realmente, isso não tem cabimento nenhum. Não há nada que justifique um homem(ou vários) forçando uma mulher a praticar o ato sexual, ferindo-a de forma irremediável e usando, para diminuir a sua covardia e responsabilidade, desculpas tão desprovidas de fundamento como: "foi ela que provocou", "ela estava usando uma roupa muito justa". Quem pratica um ato desses o faz porque é covarde e quer se sentir poderoso, aproveitando-se de uma ocasião propícia e de alguém mais vulnerável, apenas isso. O estuprador não se contenta em estuprar. Ele quer humilhar, zombar, fazer a vítima se sentir um lixo para se sentir superior.
A história da roupa curta é apenas uma desculpa esfarrapada. A Índia e o Paquistão são países campeões de estupros. E são lugares onde as mulheres andam muito vestidas. Aliás,em muitos países do Oriente Médio, as mulheres mostram apenas os olhos. E isso não as impede de sofrer estupros. E de quem é a culpa dos estupros nessas nações ? Das vítimas que, muitas vezes, devem cometer suicídio ou são mortas pelos próprios familiares para preservar a honra das famílias.
Isso expõe um problema grave: o machismo, que sempre coloca a mulher em posição de desvantagem, em qualquer situação. E esse machismo ainda é uma nódoa não apenas em nosso país, mas no mundo todo, fazendo com que homens ( e mulheres) eduquem seus filhos (e filhas) de forma errada. Desde cedo, vemos que os filhos são educados para ser garanhões, ou seja, sempre conquistar todas as moças para provar sua virilidade. E não faz muito tempo, as mocinhas ainda tinham que casar virgens. Embora hoje não se dê mais tanta ênfase à virgindade nos tempos atuais, podemos notar que ninguém estranha uma moça virgem, mas todos duvidam da masculinidade de um adolescente virgem. Um rapaz tem que provar que teve sua experiência sexual para que não façam insinuações a seu respeito. Filhos não são educados para ajudar em casa, nos trabalhos domésticos, porque isso é "coisa de mulher", mesmo hoje, quando as mulheres já trabalham fora e dividem, com seus maridos, as despesas das casas. Como vemos, ainda se educam os filhos meninos para ser superiores às filhas, que ainda são educadas para agradar, ser educadas, ceder, não falar alto, "não ser mandonas" porque não fica bem.
É preciso que se fale nesses resquícios da educação machista que predominam em nossos lares para que pensemos em como eles podem ser prejudiciais para a formação do caráter de nossos filhos, pois muitas mães acham natural que os seus filhos rapazes tenham várias namoradas ao mesmo tempo, traiam, abandonem-as quando engravidam, já que, como são homens, podem fazer o que querem, como se ser homem isentasse alguém de suas responsabilidades. Também vale salientar que ainda se acha natural a traição masculina. Diz-se sempre: "homem trai mesmo." Já mulher não pode trair. Se trai, é uma meretriz, prostituta, Messalina. Parece até que ser homem torna alguém superior, uma figura sagrada, intocável.
Pensando em tudo isso, podemos concluir que o Brasil tem mesmo uma cultura do estupro muito arraigada. E é mesmo necessário que mulheres ( e homens) protestem e exijam uma punição exemplar para os estupradores, ainda que saibamos que isso nunca será suficiente para reparar os danos físicos, morais e psicológicos sofridos por essa criança, que terá que conviver com eles o resto da vida.
Porém, é preciso ir muito além dos protestos e punições. Nós todos temos que ver que não podemos mais permitir que essa cultura machista continue na nossa sociedade. Pais, mães, educadores e psicólogos precisam se unir, discutir e rever a maneira como se têm educado os meninos e as meninas para que eles e elas entendam que diferenças não querem dizer que um sexo entenda que pode dominar o outro nem submetê-lo a sua vontade como bem entende. Se não revermos agora mesmo a maneira como temos criado nossos filhos, estaremos gerando mais machistas que entenderão que podem desrespeitar as mulheres como se elas fossem objetos sem valor.