Da violência real e virtual
Recebo uma mensagem curiosa: na verdade foram várias mensagens oriundas de muitos amigos e amigas e também desconhecidos e desconhecidas que estão em minha lista de telefone. A curiosidade mata o gato, então fui ver do que se tratava: um carro em velocidade e um celular. Um homem sai do automóvel narrando a traição de uma mulher jovem e bela. O traidor é visto com cara de paisagem e o medo aparece tanto nela como nele. Em sociedades machistas a traição de uma mulher muitas vezes dá em morte e pensamos o pior. O desfecho é lamentável, o traído bate em tudo e em todos, sobra até para o carro, o cara de paisagem permanece como antes, o narrador aplica um rosário de moral e a jovem é surrada pouco a pouco. O caso percorreu a internet e caiu como bomba na cara dos engraçadinhos que fizeram da peça teatral chacotas possíveis e impossíveis. A ressonância da fofoca e do fato alimentou a maldade humana e a menina saiu como se esperava. Mas o que se esperava?
São óbvias as ações de violência que perpassam todo o enredo demonstrado na internet. Do início ao fim a violência cumpre o seu ciclo de terror. Terror alimentado e comido por todos com prazer e atenção. Desde o momento em que o “câmera” chega ao motel até a hora do Boletim de Ocorrência da PM ficamos sabendo de tudo e de todos. São os novos tempos da hiper-realidade, do virtual “quase ao vivo”. E com a participação de um público que sádico, apimentou a relação mais do que deveria jogando para o mundo toda a privacidade dos atores especialmente da mulher.
É preciso frisar o aceite social do papel da cara de paisagem do traidor que sequer levou a destruição do seu patrimônio à polícia. Sua face é o machismo materializado e humanizado que faz parte de nossa cultura desde a colonização. A falocracia falou mais alto. Um acordo tácito se forjou entre os machos (traído, traidor e o comparsa que sugeriu o uso de outra mulher). Em relação à traidora do acordo restou-lhe a crucificação e a coerção por parte de uma sociedade que não respeita o direito à privacidade. Ao “cara de paisagem” simplesmente foi lhe dado alguns apelidos carinhosos de “gordinho da saveiro”, “o safadão da manicure” “o fodão da unha”, “o garanhão da internet” e tudo mais. Estão aí algumas rotulações copiadas nas redes sociais. O gordinho se saiu bem, levou a fama de garanhão e alimentou um tecido social patrimonial e patriarcal que goza diante de um bode expiatório sem nenhuma defesa. Sem nenhuma mesmo, pois a vergonha não deveria ter se sobressaído à Lei Maria da Penha e ao machismo feminino que ajudou a jogar mais pedras na Geni.
O episódio deve causar receio: as redes sociais hoje enlatadas em celulares e livres na TV e na internet não somente matam, mas acabam com reputações em segundos. Ela reserva e leva à memória dos interessados episódios grotescos, sem deixar de amplificar, criar mitos, mentiras e outras (per)versões. Ela permite ainda mais criatividade, e a brasileira chega a ser invejável quando na reta encontra-se a face alheia. A questão seria outra caso o traído fosse o “macho”. Ele dificilmente teria o vídeo virilizado pelos meios de comunicação. Para o homem é normal e desde a Casa Grande as relações no Brasil funcionam assim. Mas a violência contra a mulher aparentemente vitaliza o gosto por ela. Pela mulher e pela violência desmedida, principalmente quando a Geni não faz parte do que é nosso. A Geni em tela foi investigada, maltratada e suas redes sociais invadidas e corrompidas. E convenhamos, sua vida íntima ou sexual não é da conta de ninguém e, mesmo assim, não foram respeitados os filhos e outros membros da família. E a violência contra ela passou despercebida quando não necessária e obrigatória diante da “normalidade” do ato. O episódio, enfim, nos lembram as torturas do século XVII só que sem os apetrechos que se limitavam ao corpo quando já em público. A tortura “pós-moderna” atinge a alma e não necessita do espaço medido e do tempo em controle. Hoje ela viaja rapidamente pelos meios de comunicação e nem é preciso destruir os corpos das vítimas ou dos acusados. A morte é social, espiritual eu diria, com garantia da impessoalidade e do não sentimento de culpa por parte daqueles que assistem e usufruem do sofrimento alheio.