Situações de conflito, geralmente, nos marcam com profundidade, deixam cicatrizes e podem ficar representadas em nosso inconsciente como momentos de vergonha que enterramos sem direito à exumação. Porém, é um erro sepultar o que pode servir de guia para outros indivíduos. É um equívoco envergonhar-se de qualquer experiência nociva que foi capaz de produzir libertação. Que persista a lição, jamais o esquecimento. Costumam dizer o contrário, mas o registro de episódios determinantes em nossa biografia, mesmo que tenham raízes danosas, é uma válvula de expurgo para alma.
 
Num passado, que já é remoto, trabalhei numa multinacional de telecomunicações, uma empresa criada para ser 'espelho' da Embratel privatizada e que se orgulhava da excelência do seu DHO (Recursos humanos). Eu ganhava um salário compatível com a responsabilidade, possuía um bom cargo, me dedicava com alegria às tarefas e exercitava a boa vontade com todos. Em determinado ponto da jornada, devido ao meu perfil questionador e criativo, passei a ser alvo de várias ações de assédio moral provocadas por um gestor em conluio com sua jovem assistente. Não demorou muito e fui demitido de forma traiçoeira. Na manhã seguinte, já ocupavam o meu lugar e o casal de carrascos justificava a minha eliminação denegrindo o meu esforço. Um resumo de premeditação perversa e ordinária.
 
A criatividade que indaga atrai simpatia e colhe inimigos.
 
Antes que me emboscassem, pressentindo as manobras inescrupulosas, procurei os canais da empresa onde eu pudesse comunicar os abusos e a trama sórdida que planejavam. Fui ignorado em todas as instâncias que cuidavam do desenvolvimento humano dentro da firma.
 
Destituído e tomado pela indignação, escrevi uma carta denúncia e enviei através de e-mail para todos os funcionários. Atitude desaconselhável, segundo os enfadonhos consultores de RH. Causei bochicho, recebi dezenas de respostas elogiosas e solidárias. Depois disso, nunca mais aceitei me subordinar aos medíocres e aos canalhas por vocação.
 
Nos ambientes corporativos, é de conhecimento público que as pessoas se acovardam, prostituem princípios humanitários para manterem suas cadeiras, se tornam cúmplices nas torpezas pelo medo do desemprego ou no frio desinteresse pelo outro. Não que eu seja uma alma irrepreensível e absolutamente imaculada, mas nunca aceitei corromper meus valores para preservar qualquer tipo de status.
 
Quase sempre, empresas são ilhas ditatoriais regidas pela falácia da meritocracia, contrastam com a política democrática das regiões em que estão inseridas. Por serem ditaduras arquitetadas em infinitas ordens hierárquicas, cometem transgressões nos domínios do seu território. Delitos que são abafados pela tropa que serve ao capital. 
 
Na época do incidente, criei uma comunidade no falecido Orkut sobre o tema da conduta corporativa (chamava-se “Demitentes”). Recebi centenas de depoimentos e denúncias escabrosas, não de trabalhadores, mas de vítimas da cadeia de poderes. A metáfora mais eficiente para traduzir a função do organograma empresarial é descrevê-lo como um rufião das virtudes alheias.
 
A pior face da coação moral não é a revolta que ela causa ao torturado, o que choca e paralisa é a silenciosa cumplicidade coletiva que legitima a violência do algoz contra um companheiro de equipe.
 
Talvez o meu degrau mais memorável tenha sido este, quando quebrei os grilhões e afrontei a sordidez estabelecida. Foi um alívio eufórico, acompanhado de uma inquieta compaixão pelos colegas que não ultrapassavam as fronteiras daquela subserviência amoral.
 
Leio a carta que escrevi nos dias que se sucederam à demissão, palavras que se confundem na memória entre impressões sensoriais e a realidade da circunstância. O abalo emocional continua presente como tatuagem dolorosa e irremovível.
 
Existem ocorrências para as quais não cabem justiça ou vingança. Resta-nos como opção fazer reverberar o eco infame, capaz de despertar outras mentes e semear os direitos que protegem os justos.
 
Seria inconveniente terminar o meu relato fomentando rompantes de dignidade libertária aos que me acompanham. Provavelmente, o mais apropriado é deixar um alerta: “mantenha este texto fora do alcance das crianças”.
 
Segue a emotiva carta de despedida, enviada por mim após o vil desligamento de um emprego:
 
“Prezados,
 
Infelizmente, não tive muito tempo para me despedir dos colegas que, durante tantos anos, foram uma extensão da minha família. Fiquei muito emocionado ao deixar todos vocês e essa comoção engasgou minhas palavras no dia da minha saída.
 
No caso da minha demissão, existem dois aspectos: a versão e a verdade.
 
A versão da performance deficiente foi bem divulgada, mas a verdade é o sentimento e os fatos que habitam os corações dos que me conheceram, dos que conviveram com a minha postura profissional e que me deram a honra de compartilhar a amizade e o companheirismo.
 
Foram muitos anos de empresa, período em que fui premiado com duas promoções, com dois mandatos na CIPA (eleito pelos funcionários) e administrei uma das maiores carteiras corporativas da equipe, sem nunca ter entrado em conflito com nenhum cliente.
 
 A verdade é que enfrentei uma grande dificuldade de adaptação aos novos rumos da área. Lamentavelmente, o departamento se transformou, aos meus olhos, num lugar triste e povoado, em sua maior parte, pela insatisfação.
 
Considerei justa a minha demissão porque realmente não me encaixo num ambiente onde as ideias nascem mortas e onde a criatividade é sufocada; além disso, não concordo com processos petrificados que não se dinamizam por mero capricho improdutivo, não aceito grosserias e nem tentativas de constrangimento no ambiente profissional.
 
Meu desligamento foi correto, pois eu não estava afinado com uma gestão que me parecia sem ressonância e que não despertava em mim o comprometimento. A dissonância faz com que o trabalho seja uma tarefa mecânica e desagradável. Sem a sensibilidade e o coração, o gestor apenas gerencia, mas não lidera.
Enfim, foram árduos anos com um saldo de dezenas de camaradas e somente dois desafetos. Penso que me retirei com lucro.
 
Aos companheiros que constam dessa lista, preciso dizer que foram meus professores, devo muito a todos vocês e talvez nem saibam disso.
 
Aos dois desafetos, também presentes nessa jornada e que, certamente, aqui se reconhecerão, estendo a minha admiração pela capacidade de sincronizarem-se nas sombras para a criação um fabuloso balé que tomei a liberdade de apelidar como ‘A dança dos punhais’.
 
Um imenso abraço a todos os amigos. Deixo, na sequência, uma mensagem de motivação.
 
 
*** O Coronel e o jagunço***
 
‘Em algum ponto da vida, um herói sempre está destinado a encontrar o seu vilão e esse confronto é que o fará ter plena consciência da sua fortaleza ética.
 
Um vilão se nutre de pequenas maldades, seu prazer é explorar fraquezas, é surpreender de forma desleal. A ilusão do seu poder está em causar o medo. Por isso, no primeiro enfrentamento, o vilão pode até vencer a batalha, mas sua guerra será, inevitavelmente, perdida.
 
No breve instante em que tomba, cedendo ao golpe traiçoeiro, é que o herói descobre o valor de estar vestido com a verdade e a verdade é um colete moral que o torna invulnerável. '
 
Obrigado. ”
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 12/01/2016
Reeditado em 03/05/2016
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