Lincharam o pinto lilás e o homem de cara verde pode ser o próximo
Eu fui testemunha ocular e não pude fazer nada. Este é o relato de um fato real, ocorrido na Fazenda Turmalina, região de Itagibá-BA, nos idos anos 1972. Eu e minha família, na época composta de mãe e mais três irmãos, fomos convidados a morar ali, porque estávamos passando fome e não tínhamos onde morar em Jequié-BA, minha cidade natal. Dentre as diversas casas onde moramos na fazenda, uma delas era a chamada “Casa do Motor”, porque ficava perto do motor que gerava energia elétrica, e que era ligado, apenas, durante as estadias da fazendeira.
Ali, pertinho de uma lagoa, ouvíamos sapos e grilos a noite toda. Minha mãe criava galinhas soltas no quintal. Eram galinhas caipiras e de granja, estas nascidas daqueles pintos vendidos em feiras livres. Algumas vezes aconteciam brigas entre eles e elas, comuns inclusive entre machos para mandar no terreiro. Os mais fracos desistiam, se submetiam à maioria. Numa dessas pendengas um pintinho de granja ficou ferido e teve os cuidados de minha mãe. Na tentativa de curá-lo, ela usou Lepecid, um remédio para curar feridas de bovinos. O coitado ficou todo lilás, cor do spray.
A diferença era gritante, principalmente nas partes sem penas. E os outros pintos começaram a agredi-lo na hora da disputa por comida. Nem sempre estávamos por perto para defendê-lo. Em uma das investidas, logo na hora da primeira refeição de uma manhã, as agressões foram tantas e tão severas que o coitado não resistiu e morreu. Pra mim foi uma tragédia não poder tê-lo salvo; até que tentei, corri pra cima e tangi os demais. Mas a ferocidade e rapidez superaram minha agilidade para evitar o linchamento.
Essa é uma das lembranças que carrego daquela estadia na fazenda e a comparo com tantas outras que leio em jornais e vejo em programas de televisão, acontecendo com pessoas de periferias, homossexuais, mulheres, jovens negros, indígenas, povos de terreiro, moradores de rua, prostitutas, idosos e crianças. Nossa sociedade tem se tornado cada vez mais perversa e desumana. Nem ouso citar as discriminações que sofro, de pessoas de várias origens e especificidades. Prefiro calar, muitas das vezes, a iniciar um ineficiente bate boca ou guerrilha. Somos todos preconceituosos, em alguma medida. Depende muito do local, das circunstâncias etc.
Somos hoje grupos difusos, pertencemos a várias coletividades, virtuais ou pessoais, e estamos sujeitos a patrulhamento prós e contra isso e aquilo, nem sempre com argumentos convincentes, nem sempre de boas intenções. Cada um no seu quadrado, defendendo suas convicções e opiniões, às vezes oprimindo para se defender ou perceber, outras vezes sendo oprimidos sem notar. Nessa roda vida, vamos esmagando individualidades, apagando pessoas, massacrando memórias e histórias uns dos outros. Estamos no fluxo desse movimento contestatório, no pico da onda. Pra onde vamos e qual o resultado, só o futuro dirá, se ainda houver alguém vivo pra contar a história.
Valdeck Almeida de Jesus, poeta, escritor e jornalista. Salvador, 31 de dezembro de 2015
Ali, pertinho de uma lagoa, ouvíamos sapos e grilos a noite toda. Minha mãe criava galinhas soltas no quintal. Eram galinhas caipiras e de granja, estas nascidas daqueles pintos vendidos em feiras livres. Algumas vezes aconteciam brigas entre eles e elas, comuns inclusive entre machos para mandar no terreiro. Os mais fracos desistiam, se submetiam à maioria. Numa dessas pendengas um pintinho de granja ficou ferido e teve os cuidados de minha mãe. Na tentativa de curá-lo, ela usou Lepecid, um remédio para curar feridas de bovinos. O coitado ficou todo lilás, cor do spray.
A diferença era gritante, principalmente nas partes sem penas. E os outros pintos começaram a agredi-lo na hora da disputa por comida. Nem sempre estávamos por perto para defendê-lo. Em uma das investidas, logo na hora da primeira refeição de uma manhã, as agressões foram tantas e tão severas que o coitado não resistiu e morreu. Pra mim foi uma tragédia não poder tê-lo salvo; até que tentei, corri pra cima e tangi os demais. Mas a ferocidade e rapidez superaram minha agilidade para evitar o linchamento.
Essa é uma das lembranças que carrego daquela estadia na fazenda e a comparo com tantas outras que leio em jornais e vejo em programas de televisão, acontecendo com pessoas de periferias, homossexuais, mulheres, jovens negros, indígenas, povos de terreiro, moradores de rua, prostitutas, idosos e crianças. Nossa sociedade tem se tornado cada vez mais perversa e desumana. Nem ouso citar as discriminações que sofro, de pessoas de várias origens e especificidades. Prefiro calar, muitas das vezes, a iniciar um ineficiente bate boca ou guerrilha. Somos todos preconceituosos, em alguma medida. Depende muito do local, das circunstâncias etc.
Somos hoje grupos difusos, pertencemos a várias coletividades, virtuais ou pessoais, e estamos sujeitos a patrulhamento prós e contra isso e aquilo, nem sempre com argumentos convincentes, nem sempre de boas intenções. Cada um no seu quadrado, defendendo suas convicções e opiniões, às vezes oprimindo para se defender ou perceber, outras vezes sendo oprimidos sem notar. Nessa roda vida, vamos esmagando individualidades, apagando pessoas, massacrando memórias e histórias uns dos outros. Estamos no fluxo desse movimento contestatório, no pico da onda. Pra onde vamos e qual o resultado, só o futuro dirá, se ainda houver alguém vivo pra contar a história.
Valdeck Almeida de Jesus, poeta, escritor e jornalista. Salvador, 31 de dezembro de 2015