RATOS DE NAVIO

RATOS DE NAVIO

Estamos diante de mais alguns capítulos da história de corrupção no Brasil, sendo que desta vez assumindo enormes, complexas e escabrosas proporções, que fogem ao costumeiro roteiro comportamental dos envolvidos nas ações dessa natureza, quais sejam: políticos, empresários, funcionários públicos e privados, governos (federal, estaduais e municipais), as outras duas esferas do poder constitucional (legislativo e judiciário) e finalmente o seu principal personagem: o povo brasileiro.

Essa história é longa e vem desde a descoberta dessa abençoada Terra de Vera Cruz, com seu inicio oficial de irregularidades registrado no século XVI através dos funcionários públicos encarregados de fiscalizar o contrabando e outras transgressões contra a coroa portuguesa que, ao invés de cumprirem suas funções, acabavam praticando o comércio ilegal de produtos brasileiros como pau brasil, especiarias, tabaco, ouro e diamante.

Seu segundo momento mais marcante refere-se à extensa utilização da mão de obra escrava na agricultura brasileira e na produção do açúcar. De 1580 até 1850 a escravidão foi considerada necessária e, mesmo com a proibição do tráfico, o governo brasileiro mantinha-se tolerante e conivente com os traficantes que burlavam a lei. E assim foi até a proclamação da independência em 1822 e a instauração do Brasil República, quando outras formas de corrupção, como a eleitoral e a de concessão de obras públicas, surgem no cenário nacional. A última estava ligada à obtenção de contratos junto ao governo para execução de obras públicas ou de concessões.

A corrupção eleitoral é um capítulo à parte na história brasileira. Deve-se considerar que a participação na política representa uma forma de enriquecimento fácil e rápido, muitas vezes de não realização dos compromissos feitos durante as campanhas eleitorais, de influência e sujeição aos grupos econômicos dominantes no país.

Na virada do séc. XIX para o séc. XX, variadas formas de corrupção já se estabeleciam quase que formalmente no país, mas é a partir da revolução de 1930, com Getúlio Vargas e uma das mais graves e acintosas violações dos princípios democráticos já ocorridos na história brasileira, principalmente através de fraudes eleitorais, que a corrupção ganhou força, chegando a um tal nível de descarada atitude que o político paulista Adhemar de Barros ganhou publicamente como lema de governo o ¨rouba, mas faz¨, imitado anos depois por Paulo Maluf.

Até mesmo no tão propalado e atualmente lembrado regime militar, que vai de 1964 a 1985 e que alguns incautos, para não dizer ignorantes radicais, insistem em pedir seu retorno alegando a elevada probidade, honestidade e seriedade com a coisa pública, a corrupção também se fez presente, claro que de forma mais reservada e escondida da sociedade, como é característico dos regimes ditatoriais. Dentre as irregularidades de corrupção ocorridos nesse período, destacamos os da Capemi e Coroa Brastel.

Mas é a partir do governo de Fernando Collor de Mello que a corrupção começa a ganhar proporção e características inusitadas, a reboque da revolução tecnológica que teve grande impulso nessa época, qual seja, o registro dos atos de corrupção através de imagens, fotografias e gravações realizadas às escondidas, em conversas, documentos e ¨tenebrosas transações¨.

Outro aspecto interessante e de certa forma esperado, foi a constatação da conivência velada do povo e da sociedade brasileira com esse comportamento corrupto, tema oportuno de análise e estudo sociológico pelas instituições acadêmicas. Eu mesmo, em artigo escrito em 2008 - ¨O Eterno Retorno¨ - comentei a respeito, comparando e fazendo uma relação desse comportamento ao ¨Discurso da Servidão Voluntária¨ de Étienne de La Boétie, escrito em 1549, que faz uma crítica à condição de subserviência dos povos à vontade dos governantes, principalmente tiranos e ditadores.

No Brasil essa condição fica evidente nas frequentes reeleições de políticos corruptos, como atualmente ocorre com o próprio Collor de Mello, ex presidente citado anteriormente, que sofreu impeachment devido corrupção comprovada, ficou inelegível por oito anos e depois de cumprido o castigo, voltou como senador da república nos braços do povo que o elegeu com votação expressiva.

Um traço singular na atual corrupção brasileira é a aparente insaciabilidade dos corruptos, que parecem não ter limites no montante de propinas e desvios monetários nos quais fazem exigências, criando uma situação de enriquecimento relâmpago e muito desproporcional à sua atividade laboral.

A grande novidade fica por conta da atuação dos órgãos de repressão aos crimes de corrupção, como a Polícia Federal e o Ministério Público e a consequente prisão dos envolvidos, mesmo os detentores de poder, influência e dinheiro. Assistimos todos os dias a um teatro tragicômico em que os acusados choram, ameaçam, adoecem, agridem, calam e assumem o mais variado comportamento, alegando dignidade, honra, memória do pai ou familiares e outras falas retóricas, sempre insistindo e partindo do pressuposto da inocência, agindo como verdadeiros ratos de navio, que entram escondidos e protegidos pelas sombras, se instalam nos porões fazendo um terrível estrago à embarcação e são os primeiros a pular fora diante do iminente naufrágio.

Enfim, mesmo contrariando a tese de alguns sociólogos, historiadores e cientistas políticos, acredito que a corrupção no Brasil tem raízes profundas, é crônica, progressiva e incurável, além de fazer parte da cultura social brasileira, bastando para isso observar os pequenos atos de aparente inocência como dar gorjetas ou agrados para ser melhor atendido em serviços básicos e essenciais oferecidos pelo estado ou pelas instituições privadas; tentar subornar fiscais do trânsito para evitar multas ou até mesmo nas atitudes omissas em relação às irregularidades e atos de corrupção. Fica claro que a corrupção não está presa a ideologias, de esquerda ou direita.

Apesar dessa análise sombria a respeito do comportamento corrupto do brasileiro, que não deixa de ser inerente à condição humana universal, acredito que através de uma mudança radical no controle, fiscalização e punição rigorosas, é possível a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, como já ocorre em alguns poucos países tidos como exemplo de feliz convivência humana.

Marco Antônio Abreu Florentino