Questão de matemática ou questão social?
Dia destes leitores derramaram rios de lágrimas ao se debruçarem sobre o noticiário que trazia uma reportagem de cortar o coração da sociedade. A notícia era tão triste, mas tão triste que deixava o leitor quase em estado de choque. Na verdade nem sei porque causou tanto espanto já que é cena previsível nesse quadro social de exclusão, onde milhares vivem às margens da sociedade e em cenários de sobrevivência sub-humanos. Todos choraram ao lerem que um pobre coitado havia perdido o emprego por cuidar da mulher em coma, criava um filho sozinho e vendo-o passar fome, dava a ele o pouco de alimento que conseguia. O auge da mega tristeza do texto foi as circunstâncias que levaram o, até entao, bom homem a ser preso e desmaiar de fome durante a prisão. O bom homem teria contado durante o seu depoimento que roubou dois quilos de carne para alimentar o filho, já que ao passar pelo caixa com leite, pão e carne, percebeu que o dinheiro do bolsa família ainda não havia sido depositado. Fome não espera data de pagamento, concluo eu. Algumas pessoas acham que ele foi bandido, que deveria ter pedido a carne ao dono do estabelecimento. Essas pessoas devem viver no mundo dos contos de fadas! Teria o dono do estabelecimento dado a carne ao faminto? Não creio que haja bondade em negociações a esse ponto, raramente. Acho coisa de humor negro quem nunca teve filho passando fome, meter-se a dar opiniões nessas situações. Mundo engraçado de leitor alimentado, aquecido, bem acomodado em sua residência, meter-se a entendido de situações de fome e atitudes geradas por essa megera. Mas ainda que tivessem opiniões assim, tiveram também os chorões como eu, que se emocionaram muito com a ajuda que policiais deram ao ladrão da fome. Policiais se uniram, pagaram a fiança, compraram alimentos e então o pai ladrão gerado pela fome, voltou para casa e cuidou do filho e o alimentou. Foi bonito ver a imagem do sorriso deles na casa miserável, mas com com comida. Seria a notícia mais linda do ano, posso dizer até mesmo que seria um prato cheio para alimentar as boas emoções da sociedade, se não fosse o fato de descobrirem que ele já havia roubado carne em anos anteriores. O novo noticiário caiu quase que como bomba, veio seco, como se decepcionado com o heroi ladrão que roubou para alimentar um filho. Pensei em matemática, mesmo que matemática não seja minha amante. Matutei como fazem os trabalhadores da roça, quase acendi um cigarro de palha para a coisa ficar mais reflexiva, porém não se deve fumar porque faz mal a saúde. Vamos aos cálculos: O menino tem doze anos e tem estômago, o pai também tem estômago. Esses estômagos se esvaziam a cada três horas e gritam de fome de novo. Se em doze anos, esse homem roubou dois quilos de carne em três situações diferentes, ele então roubou três vezes em mais de novecentos dias. Acho pouco, três vezes não mataria a fome de novecentos dias. Porém, não posso desconsiderar a defesa de valores e de conduta moral dessa sociedade, dizem agora que o homem é mesmo ladrão, até torceram as páginas do jornal anterior para recolherem suas lágrimas derramadas na primeira versão da notícia. Parece que ninguém mais quer chorar pelo homem, porque roubar carne uma vez para matar a fome merece lágrimas, mas roubar carne três vezes em novecentos dias para matar a fome, não pode, é condenável e merece indignação. A maioria dos bons leitores que carregam princípios de honestidade e moral, sentados em suas confortáveis poltronas, dizem que não se pode roubar. Eu também penso assim, mas não estou passando fome. Me assumo bandido da pior espécie agora, afinal se eu não tivesse emprego, tivesse filho faminto e vivesse sem nenhuma perspectiva creio que minha noção de roubo de dois quilos de carne seria saída de emergência. Dizem que basta arrumar emprego para não precisar fazer isso. Falam isso como se emprego estivesse sobrando em cada esquina contemplando a todos os desesperados e famintos. As vezes penso na sorte que dei de ter nascido onde nasci, porque temos mundos diferentes num mesmo espaço geográfico, onde uma mesma notícia está repleta de condições também diferentes quando se faz em um mesmo cenário. Nosso sistema de governo gera ladrões de carne e filhos que dependem desse ato condenável, à medida que não promove educação igualitária e de qualidade para todos, à medida que não tem políticas públicas funcionais no combate à miséria e geração de trabalho. À medida que sobrecarrega tudo com altos impostos, à medida que para se ter o básico é preciso ter muito dinheiro. Luz é artigo de luxo, comida é artigo de luxo, moradia é artigo de luxo. Pior é que tem gente nesse mesmo espaço geográfico que nem sequer sabe disso. Quando me dizem que um lugar é belo de se viver, sempre avalio quem é que está falando, porque o conceito de belo não é o mesmo para todos. Fiz uma pausa aqui, olhei demoradamente para a montanha que reina em frente a minha janela e pensei na reação da sociedade quando lê no noticiário sobre milhões de reais desviados por políticos. Ficam indignados, clamam por justiça, mas não na mesma intensidade de carga emotiva como a que tiveram no caso do homem que roubou dois quilos de carne, que de coitado passou a bandido condenável por ter praticado isso por três vezes. Acho que da próxima vez ele deveria voltar ao mercado com os seguintes dizeres: Bom dia caro senhor proprietário! Tudo bem? Eu e meu filho estamos há alguns dias sem comer, e percebo que ainda não tenho dinheiro. Ando fraco por duas situações,uma é a fome de comida e a outra de oportunidades. O senhor pode por gentileza dar-me um trabalho hoje em troca da carne? ( nesse ponto o dono vai olhar desconfiado, não dará o trabalho e ainda pensará: é ladrão, vai roubar-me). Creio que o senhor deve procurar a assistência social, dirá o dono. O então faminto pedinte vai esclarecer, que já esteve nas repartições públicas, enormes filas, dias longos de espera, muitas cópias de documentos, mas que o governo vai ajudar com setenta reais porém daqui a trinta dias e a fome é de antes de ontem já. A essa altura da conversa entre pedinte e proprietário, algumas pessoas já estarão de orelha em pé, ouvindo os argumentos e se posicionando a favor ou contra a situação, se emocionando ou não, condenando ou não, escolhendo adjetivos como coitado ou safado. Depois todos seguem suas rotinas: o governo, o proprietário, as pessoas e o homem com ou sem a carne. Melhor com.