A salvação
Peguei Pitangui, Velha Serrana, já ali, no final dos anos cinquenta, vindo do vizinho povoado do Brumado. E a televisão, apenas lá tinha entrado - e meia dúzia de casas, se meu estimar é acertado.
Das mais marcantes e marchantes lembranças dessa época, ficou a celebração da Semana Santa sob a energia incansável do Vigário Guerino Pontello, já não noviço, mas em pleno viço. Sua voz abaritonada enchia e estravazava a matriz lotada.
Por um dos mistérios da devoção, que arrebata qualquer cristão, mais que a Páscoa da Ressurreição, tocante mesmo era a Sexta da Paixão. Era dia sacratíssimo. Até a zona, cheia de compungidas donas, se fechava então.
Assobiar, no espelho se mirar, e acho que até dentes escovar, tudo se proibia em veneração àquele sereno nazareno que se martirizaria. Bizarria? Não, mas todo ano se bisaria.
E a noa? Era a hora em que Ele se entregava ao Pai. Três da tarde, aquele solão que parece que não mais se vai, e até o pecado se contrai. Já não havia mais como o cálice afastar. O vinho era pra se tomar e entornar.
A procissão do Cristo morto - de corpo, se ressaltava em voz que até na alma bradava - fazia-se à noite, saindo do adro da igreja matriz. Silêncio sepulcral, respeitoso sinal, que se fazia e se bendizia. E gente acorria de todas as quinze bandas do município. Era comum ainda ver animais amarrados à volta da matriz.
E os fiéis, quanta devoção? Quanta surpresa ver o farmacêutico Totonho de pés no chão? Quanta senhora, naquela mais sacra hora,
de pedra na cabeça, agradecendo ou esperando que a graça aconteça...?
De espermacenta vela à mão, cada cristão sentia-se a luz da procissão, derretendo-se na compunção. Tavali, a salvação.