Encontro entre dois mundos: uma concepção antropológica

Encontro entre dois mundos: uma concepção antropológica

Inserido no contexto da descoberta da América do final do século XV, realizada pelo navegador genovês Cristóvão Colombo a serviço da coroa espanhola, como aplicação do que tinha sido definido pelo Tratado de Tordesilhas daquele mesmo ano (1492), está o primeiro contato entre o europeu e, o que ele denominou “índio”, concepção, aliás, que resultou da verdadeira intenção que a Espanha tinha com aquela viagem, chegar às Índias Orientais. Dessa maneira, portanto, pode-se dizer que, a “descoberta” da América, foi acidental. Mas, quais foram as motivações que incentivaram os espanhóis a enfrentarem o mar desconhecido?

Fatores como a unificação espanhola, retomada de Granada, projeto do Colombo, em resumo, foram os que possibilitaram em 1492, a Espanha pôr em prática seu projeto. Mas, será que somente os fatores políticos foram os responsáveis?

A ideia de “Paraíso terreal” que habitava o imaginário dos homens também foi muito importante. Aliado às razões econômicas, foi o que motivou a busca por novas terras.

Ao se deparar com elas, Colombo estava seguro de que havia chego à Ásia. Para ele, tratava-se apenas de uma pequena ilha do grande arquipélago da Ilha da Terra. Além disso, ele encontrou vegetação típica da Ásia, mas, sobre-tudo, segundo Edmund O’ Gorman, mesmo antes de chegar às terras, Colom-bo tinha certeza de que chegaria à Ásia. Essa hipótese também é mencionada por Tzvevtan Todorov, quando diz que Colombo não tem nada de um empirista moderno, pois, para ele, o que vale é o argumento da autoridade, ou seja, da Igreja. Para ele, Colombo já sabia, antecipadamente, o que encontraria.

A ideia de “Paraíso terreal” possuía, em geral, fama mais ou menos antropo-mórfica. Lugares com criaturas perigosas e fantásticas. “hombres de um ojo y otros com hocios de perros que comiam hombres, y que en tomando su sangre y le cortaban su natura.”

As mitologias sobre criaturas antropomórficas amedrontavam o imaginário dos homens sustentado por estórias como: “Uma ilha chamada Martinino, onde só moravam mulheres, e em determinada época do ano homens de outra ilha vinham, faziam cópula e iam embora. As meninas que nasciam ficavam na ilha, e os meninos, eram mandados à dita ilha de onde vinham os homens”. Concepções de monstros, aliás, afetavam muito o imaginário social dessa época. Mas, na realidade, o que define o conceito, são as diferenças em qualquer um dos vários aspectos que costumam ser analisados, tais como, físicos, biológicos, culturais ou sociais, por exemplo. Pois, tal diferença, exclui tal ser ou espécie de ser da já conhecida e na qual vive quem avistou e ou “descobriu” a nova. Assim, fatos como, a descoberta da América, foi, sobretudo, um imenso choque cultural para a Europa, por apresentar, entre outras coisas, uma nova “raça” de homens, a qual eles denominaram “índio”.

Marco Polo não faz referência ao Paraíso terrestre; outros, no entanto, supõem tê-lo visto ou conhecido por notícias fidedignas, mas não omitiram referência sobre um jardim rodeado de figuras monstruosas, comparáveis aos cinocéfalos e caudatos.

Tal presença poderia representar a necessidade de maior cuidado com a salvação.

A famosa fonte da Juventude (ou Juventa) também compunha o fantástico imaginário dos navegantes. As águas que poderiam trazer a eterna mocidade sempre almejada pelos homens de todos os tempos.

Essa ideia foi além do imaginário popular, atingindo também a corte e aqueles cuja sabedoria e fortuna separaram do comum os homens da fama proporcionada por esse grande descobrimento que logo alcançou adeptos, conforme a relação de Pedro Mártir a Leão X sobre o assunto.

Mitos como do El Dourado, entre outros que, segundo Sérgio Buarque, são “mitos eruditos”, fundamentam-se nas palavras de Marco Polo, ganhando reinterpretações conforme novos conhecimentos geográficos vinham sendo adquiridos. Um deles, por exemplo, diz respeito à Amazônia.

As diversas criaturas antropomórficas, descritas no imaginário dos homens, serviam, junto à busca por ouro e outras riquezas, além de glória, como “combustível” que os motivou a seguir a diante. Pois, não há motivação maior para o homem do que a busca por riquezas, aventuras e demais “honrarias”, sobretudo, pelo Paraíso terrestre.

Conhecer quais foram as motivações que fizeram da Espanha a pioneira no contato com as “terras habitadas do oeste”, é importante para a compreensão do que trouxe a Europa para este “mundo” ameríndio, permitindo o contato com nativos e negros na América.

A partir da Unificação espanhola sob o comando de Castela, foi fundamental para tornar o ano de 1492 “admirável”. Alguns fatos fundamentais para esta unificação se consolidaram nesse ano, além de que, nesse mesmo ano, Co-lombo se lançou ao mar rumo à rota ocidental da Índia.

Essa análise se fundamenta em razões políticas, econômicas, tecnológicas, além das fantasias que impulsionaram a Europa para cá. A busca por uma alternativa ocidental, visto que, a oriental estava sob domínio português, era fundamental para a Espanha, pois, o comércio de especiarias era bastante lucrativo.

Nada mais impedia a Espanha de se “aventurar” pelo mar adentro, para um mundo fantástico e aventureiro que habitava a imaginação de homens sedentos por glória.

A antropologia é a área responsável pelo estudo da forma corporal enquanto característica cultural, tal como a anatomia estuda a forma corporal enquanto organismo. Para a primeira, o indivíduo é apenas um importante membro de um grupo social ou racial. Assim sendo, tal como a sociologia, a antropologia estuda a sociedade, prezando aspectos anatômicos e características fisiológicas, além de culturais, específicos do grupo étnico estudado. Apesar de dialogar com a anatomia, a psicologia ou a fisiologia, por exemplo, a antropologia se difere por uma linha tênue, pois, como já dito, estuda o grupo e não o indivíduo. Dessa maneira, do ponto de vista antropológico, o encontro entre dois mundos foi também um imenso choque cultural, pela diferença enorme entre as raças, não só referentes às condições geográficas ou climáticas, mas de maneira geral. Do ponto de vista moderno, a semelhança mais significativa é que, ambas, são da raça humana. Assim, com o ímpeto de conquistador, mais vivo do que nunca no espanhol, uma vez que, alguns anos antes, teve de lutar por sua unificação por meio da expulsão dos mouros que habitavam seu território desde o século VIII, não teve outra reação se não a de exercer domínio territorial sobre o “Novo mundo”, incluindo os índios como seus escravos. Apesar disso, a escravidão, em primeiro momento, foi a forma de violência utilizada pelos europeus para estabelecer domínio. Ensinaram a comercializar objetos em troca de dinheiro (atividade que os índios exerciam por meio de “sistemas de trocas”, ou seja, a simples troca de um objeto por outro sem levar em conta a finalidade para a qual servia, portanto, sem estabelecer valor algum), a usar roupas, entre outros.

No entanto, esse contato entre as duas culturas que, desde sempre, es-tiveram separadas por um imenso oceano, trouxe para o "Novo Mundo" um inimigo mortal e invisível, as doenças. Trazidas pelos europeus, as doenças foram as principais formas de dizimação dos nativos, uma vez que estes não as conheciam. Dessa maneira, possibilitou a dominação espanhola, relativa-mente sem sustos sobre o enorme Tahuantinsuyu (Império dos Quatro quadrantes) dos Incas e o início da colonização espanhola e europeia do continente. Elas exerceram completa influência sobre o processo de colonização espanhol, promovendo, por consequência, a miscigenação entre europeus e índios e, posteriormente, com a vinda dos negros da África para a América, entre estes e branco e, entre estes e índios. Portanto, o processo de colonização é um imenso mosaico de fatores que vão desde razões político-econômicas, passando pela religiosa, pela cultural e chegando à social. Assim, com os brancos, também veio o processo de estratificação social, ou seja, nasceram os conceitos de “rico”, “pobre” e “escravo”, posteriormente as classes “alta, média e baixa”.

Dessa maneira, é possível perceber, por meio dessa breve análise, o quanto um processo político-econômico influencia à longo prazo e marca a história de um povo “recém-descoberto”. É dessa influência avassaladora, basicamente, que é possível compreender o processo de escravidão e suas consequências.

Escravidão na América

O processo de escravidão na América se deu, inicialmente, em razão da recusa indígena em trabalhar para os europeus, fundamentando-se na defesa de sua raça e de seus costumes. Assim, percebendo a má vontade dos nativos em “colaborar” com o processo de colonização, os europeus trouxeram os africanos, mais acostumados à servidão. Eis que o processo de miscigenação tinha “ingredientes suficientes” para acontecer. E não tardou muito. Dessa mistura, nasceram as “raças secundárias”, que, nos dois primeiros séculos de conquista foram:

• Mestizos

• Mulatos

A primeira refere-se às relações sexuais entre os europeus e os índios. E a segunda, entre os brancos e os índios. Tidas como as primeiras descendências raciais da América, ambas não tiveram melhor destino que os índios ou os negros. Continuaram, assim como seus pais, a servir como mão de obra escrava, por todo processo de Conquista, ou seja, até o século XIX. Assim, é possível compreender, porque nos dias atuais, seja negro, ou seja índio, ambas são raças que permanecem, de maneira geral, esquecidas socialmente em todos os países, pois, basicamente, compõem força de trabalho cuja remuneração está à baixo do que recebe os brancos, mesmo os pobres, simplesmente por “questões de cor”. Desde aquela época, mesmo não existindo o preconceito, eis um conceito que tinha uma conotação social, econômica e até política e que sempre esteve ausente dos benefícios que deveriam ser igualitários.

Portanto, do ponto de vista antropológico, o encontro entre dois mundos também trouxe profundas cicatrizes na história social de índios e negros, mesmo estes tendo seus ancestrais já acostumados ao trabalho, pois, há muito tempo, lutavam pela abolição da escravidão que virou Lei apenas em fins do século XIX (1888), mas, que na prática, ainda encontra raízes difundidas nas mais diversas formas de trabalho que o mundo moderno criou a fim de suprimir suas necessidades cada vez mais crescentes e “insaciáveis”.

Considerações finais

Portanto, pelos vários pontos de vista analisados neste artigo, o encontro entre dois mundos foi intencional. Assim, enraizada a ideia da conquista, uma vez que, inicialmente, os europeus pensaram ser uma terra inabitada, eles não abdicaram da imposição cultural, aproveitando-se de seu armamento e vivência mais favoráveis. Dessa maneira, não houve, de fato, uma tentativa de miscigenação cultural, processo no qual ambas as culturas ensinariam a outra seus costumes e, o que fosse melhor, seria absorvido de ambas. Pelo contrário, os espanhóis, fundamentados pela busca por riquezas, se impuseram cultural, política e economicamente fazendo dos nativos, ou tentando fazê-los, seus escravos. Desse modo, estava traçado o destino dos índios, estarem submissos à raça dominante, os brancos, fato que ainda hoje se percebe, mesmo com a tentativa do governo pela igualdade de direitos. A política capitalista não é uma política de equilíbrio, economicamente, sempre haverá o mais forte, e, por consequência, o mais fraco. Se um for anulado, automaticamente, o outro o será. Por fim, mesmo do ponto de vista antropológico, o processo de imposição cultural que predominou na América, anulou qualquer chance de sobrevivência da cultura nativa pura, pois, a partir da assimilação de processos culturais externos, a cultura nativa estava condenada.

Referência

• STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade. A formação dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX, Universidade Autônoma de Barcelona, 2006, p. 06.

Marcel F. Lopes-Historiador (UTP)

31-03-2015