A DIGNIDADE HUMANA
Ao menos desde que os judeus registraram, em sua sabedoria religiosa, que Deus criou o homem “à sua imagem e semelhança” estava decretada a dignidade humana para quem aceitasse o Criador Supremo. No entanto, uma coisa é termos uma declaração, um estatuto, outra coisa efetivarmos no convívio com os outros os princípios deste estatuto. A história testemunha as profundas ofensas à dignidade do homem através dos tempos: intolerâncias, guerras, escravidão, genocídios, racismos, tiranias, terrorismo...
Em nosso tempo, nos estatutos dos direitos humanos, a dignidade humana é um princípio jurídico, formal e socialmente protegido. Mesmo assim, as notícias diárias nos mostram até que ponto a dignidade humana ainda é vilipendiada: torturas, sequestros, assassinatos, crueldades, carrascos cortando gargantas e queimando prisioneiros inocentes vivos...
Quando presenciamos estas cenas bárbaras e hediondas nos lembramos do que os inquisitores medievais faziam com os hereges e as ditas bruxas. Julgamos inconcebível que hoje, no século XXI, os homens ainda estraçalhem seus semelhantes com bombas, cortem publicamente gargantas e ateiem sem pudor fogo a pessoas vivas. Isto, para nós civilizados, é abominável.
Mas, já em séculos passados, encontramos pessoas iluminadas que nos indicaram o que significa “dignidade humana” e como implementá-la. E isto se tornou o divisor entre civilização e barbárie.
O mais significativo e influente arauto da dignidade do homem, no passado longínquo, foi, sem dúvida, Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494). Este filósofo e teólogo se encontra na passagem dos tempos medievais para a modernidade. O seu texto fundamental, que mereceria ser assimilado e implementado também em nosso tempo, é o “Discurso sobre a Dignidade do Homem”. Que é o marco do Humanismo. Neste Discurso se declara que o Supremo Criador, quando forjou o homem, não o determinou, nem o fixou em algum ambiente ou espaço, como havia feito com todos os outros seres, mas lhe deu a capacidade de ordenar e conhecer o que está no mundo. O próprio homem deve definir quem ele é. E isto é um grande milagre: o homem um ser indefinido; um camaleão, que se adapta a múltiplas circunstâncias. No homem se encontram as sementes de tudo, que crescerão e frutificarão, segundo a maneira como cada um as cultivar.
Para Pico della Mirandola a felicidade do homem consiste em sua capacidade de emancipação, em ele mesmo poder gerar aquilo que quer ser. Depois de Mirandola a mentalidade medieval entrou em decadência. O ideal do homem já não era mais submeter se aos reis, que regiam “por direito divino”; não era mais obedecer aos papas, bispos e sacerdotes, que obstruíam a relação direta com Deus. A busca por conhecimento, a reponsabilidade pela existência se transferiu para o indivíduo.
O homem, dotado de múltiplas capacidades, mas indefinido quanto ao que decide fazer de si, por escolha existencial pode permanecer no nível do vegetal, do animal, do animal racional, e do ser intelectual. Se se decidir pelo nível vegetal, viverá como vegetal; ao nível animal, sua vida não passará de uma vida bestial; ao nível do animal racional, a sua natureza racional demonstrará grande dignidade; ao nível intelectual o homem será um animal celeste, merecedor do respeito de todos os seres, superior aos anjos, capaz de se unir ao divino. Aqui se trata da necessidade de incentivo à Educação. Verdade é que, a partir do tempo de Mrandola, aos poucos, aumentaram as instituições de ensino.
O ideal humano de Mirandola é o homem emancipado, consciente, responsável, co-criador, que plasma a natureza. Inclusive, a afirmação de que “a razão humana possui a capacidade de ordenar e conhecer o que está no mundo”, incentivou a pesquisa da natureza e o desenvolvimento da tecnologia.
Paradoxal permaneceu na história que, ainda por séculos, permanecessem a irracionalidade, a inquisição, as desigualdades entre nobres e servos, entre escravos e patrões. O progresso científico e tecnológico foi lento, embora a transformação do mundo estivesse legitimamente autorizado pelos argumentos de Mirandola. Mais paradoxal ainda nos parece o fato de, ainda hoje, em muitos lugares da terra, o respeito à dignidade humana esteja tão distante do século de Pico della Mrandola!
Inácio Strieder é professor de filosofia. - Recife- PE.