O olhar de Ingrid Betancourt e a podridão humana

O olhar de Ingrid Betancourt é uma das coisas mais intrigantes e emblemáticas com as quais já me deparei. Nunca a vi pessoalmente, mas aquela foto que está no livro me basta. Ingrid Betancourt me lança a uma reflexão extremamente profunda sobre absolutamente tudo sempre que volto a ter contato com a sua história. E quanto mais eu olho, mais fundo eu vou.

Quando isso acontece, eu sinto vergonha. Muita vergonha.

Ela era senadora e candidata à presidência na Colômbia quando foi sequestrada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Passou quase sete anos presa na selva amazônica colombiana vivendo todo tipo de humilhação e sofrimento. Para se ter uma ideia, em praticamente metade do tempo de cativeiro, foi mantida presa por uma espécie de coleira, amarrada a troncos de árvores ou a outros prisioneiros. Todos os detalhes estão no livro Não Há Silêncio que Não Termine, que comprei muito “por acaso”, logo que ele foi lançado, em uma banca qualquer da rodoviária da Barra Funda em São Paulo. Foram os R$ 35 mais bem empregados da minha vida.

Ingrid me faz ter noção do tamanho da minha pequeneza. E, consequentemente, da pequeneza humana. É um paradoxo porque é justamente a grandeza dessa mulher que nos reduz a todos. O mais impressionante é que ela não se exclui em nenhum momento dessa mesma redução.

Tudo o que ela passou - e que, a priori, são coisas que só dizem respeito a ela mesma - já é suficiente para gerar uma grande admiração. Mas ela enfrentou tudo sem perder um pingo da sua dignidade. E além de ter suportado tudo sem perder a dignidade, ela ainda conseguiu escrever um livro.

Em cada página fica cada vez mais evidente o quanto conseguimos descer. É doloroso ver que a capacidade humana de se reduzir à selvageria por tão pouco é infinitamente maior do que o processo contrário. Mas Ingrid fez o que acho mais admirável em um ser humano: transformou tudo, cada minuto daquele sofrimento indizível, em um grande aprendizado. Incrivelmente, Ingrid se transformou em uma pessoa melhor. Há uma sensação de alívio nessa constatação porque o tal processo contrário se faz presente. Brota da própria lama em que nos metemos e nos mostra que, sim! Também podemos ser grandes!

E então, depois dessa epifania, voltamos ao lodo.

É nítida a vontade de transmitir esse aprendizado às outras pessoas. É isso que nos salta sobre a alma a cada página do livro. Mas tem gente que tem coragem de transformar tudo em política e marketing. Pessoas com coragem de simplesmente lançar toda a reflexão que nos cabe, na vala da “politicança”. Gente emitindo opinião descontextualizada acusando Ingrid de ter forjado tudo (oi?) ou de autopromoção, marketing e oportunismo reduzindo à sua própria mesquinhez tudo o que está verdadeiramente contido nessa trajetória, da campanha presidencial ao lançamento do livro seguido do “autoexílio” na França. Até mesmo uma suposta cena de estupro foi explorada da forma mais vil possível. O livro é de 2010. Parece assunto velho. Mas não é.

Todo o pacote só nos mostra que sempre conseguimos descer mais. E aqui, detrás de um computador, em uma sala confortável, sem empunhar uma arma, sem sequestrar ninguém, “pagando meus impostos”, bem longe da selva amazônica colombiana, emitindo comentários pelo Facebook, posso ser pior do que qualquer terrorista islâmico, colombiano ou militante do Boko Haram. Posso ser pior do que qualquer ditador, assassino, narcotraficante, qualquer surfistinha idiota que se acha grande coisa porque leva uns quilos de cocaína pra Indonésia.

Eu aqui preocupada em provar que Dilma e Aécio e petralhas e coxinhas e policiais e bandidos, bla, bla, bla, esqueço de olhar para mim mesma e perceber que sou pior do que todos juntos. Eu seria capaz de amarrar muitas Ingrids a uma coleira no meio da selva. E seria capaz, depois, de tentar lucrar com uma suposta cena de estupro coletivo e, mais tarde, acusá-la de autopromoção, afinal, ela estudou em Paris. Não passa de uma burguesa. Merece.

O sentimento de vergonha é indescritível. Eu não conseguiria sustentar o olhar para Ingrid. Sei disso.

E então, depois de pegar carona nessa roda e descer, descer tudo, ficar nua diante de mim mesma, ela reaparece. Com aquele olhar, é como se me pegasse pela mão e me devolvesse à superfície ainda com mais força e me dissesse: “não perca a esperança. Eu não perdi. Não há silêncio que não termine”.

Gostaria muito de um dia poder encontrá-la para dizer apenas uma coisa pessoalmente: obrigada por nos mostrar quem somos. Muito obrigada.