Não é essa a questão
Amanhã fará um mês que ocorreu o atentado ao jornal satírico francês Charlie Hebdo. Volto ao assunto por dois motivos: primeiro, para discordar da tese de que o conteúdo das charges “provocou” os assassinatos; segundo, porquê esse fato será lembrado por muito tempo na história do Ocidente, devido a todo o simbolismo que enseja.
Quando defendemos valores fundamentais e universais como a vida e a liberdade, nunca ficaremos desavisadamente ao lado da barbárie, como que “justificando” a violência. Ora seremos palestinos, ora judeus; ora cristãos, ora muçulmanos. E assim por diante, sempre ao lado de quem sofre um ataque contra seus direitos essenciais.
É por esse motivo que os comentários que tendem a dizer, indiretamente, que os cartunistas franceses “provocaram” o atentado ao publicar charges consideradas ofensivas pelos muçulmanos, causam-me contrariedade. Vejamos alguns exemplos aqui no Brasil.
Em 1997, o bispo Edir Macedo lançou um livro igualmente considerado ofensivo pelas religiões espiritualistas: “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?”. Escrito a partir do ponto de vista de sua doutrina, o livro acaba por classificar pejorativamente os cultos afros e kardecistas. Num caso semelhante, o escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie, em 1989, lançou a obra “Versos Satânicos”, sobre o livro sagrado Alcorão, e teve, no mesmo ano, uma sentença de morte contra si promulgada pelo Aiatolá Khomeini, do Irã. Em 1995, o bispo Sérgio Von Helder, também da IURD, causou furor ao chutar, num programa de TV, uma imagem da santa católica Nossa Senhora Aparecida.
Podemos ver que no caso dos bispos, independente da posição que cada um de nós tenha sobre o assunto, o debate se deu na mídia, nos parlamentos e na Justiça, dentro dos parâmetros do Estado Democrático de Direito. No caso dos franceses do Charlie Hebdo e de Rushdie, a régua foi outra.
Trago esses exemplos para mostrar como situações semelhantes podem ser tratadas e resolvidas de forma diferente. Na França, as charges do jornal chegaram a ser alvo de processos judiciais, onde, assim como o livro do bispo, acabaram liberadas. Já os fundamentalistas decidiram matar os humoristas. Um peso, duas medidas.
Quando um ocidental usa o argumento de que as vítimas “pediram” para ser mortas, ao “desrespeitarem a religião alheia”, está relativizando o valor da vida e da liberdade e alinhando-se, mesmo de boa-fé, com ideologias fundamentalistas e totalitárias; em vez de fazer coro ao “je suis Charlie”, entoa “je ne suis pas Charlie”, cedendo a um sofisma perigoso, embasado na crítica teórica ao conteúdo das publicações, calcado no respeito à diversidade.
Aí é que está: essa não é a questão. A questão é que a vida e a liberdade são valores superiores e não há como tergiversar sobre isso. Se algum religioso brasileiro atingido pelos bispos se achasse no direito de “vingar com o sangue a honra de sua crença”, como nos postaríamos? Eu não hesitaria em dizer “je suis IURD”, independente de minha fé ou de concordar ou não com o escrito ou com o feito.
Para refletir sobre tudo isso, uma boa dica é assistir ao filme Hannah Arendt, sobre o julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, onde a escritora judia alemã trata do (infelizmente ainda atual) conceito de “banalidade do mal’. Então, com certeza, poderemos chegar à conclusão de que, enquanto ocidentais, “nous sommes tous Charlie”, antes de qualquer coisa, em defesa da sacralidade da vida humana e da liberdade, afirmando-as sem relativizações.
#####
POEIRA DA ESTRADA – Bom ir a um show e constatar que a excelente banda de blues rock de Charqueadas continua em grande forma. “Como pode um homem, se dar sem sentir...”
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br
Amanhã fará um mês que ocorreu o atentado ao jornal satírico francês Charlie Hebdo. Volto ao assunto por dois motivos: primeiro, para discordar da tese de que o conteúdo das charges “provocou” os assassinatos; segundo, porquê esse fato será lembrado por muito tempo na história do Ocidente, devido a todo o simbolismo que enseja.
Quando defendemos valores fundamentais e universais como a vida e a liberdade, nunca ficaremos desavisadamente ao lado da barbárie, como que “justificando” a violência. Ora seremos palestinos, ora judeus; ora cristãos, ora muçulmanos. E assim por diante, sempre ao lado de quem sofre um ataque contra seus direitos essenciais.
É por esse motivo que os comentários que tendem a dizer, indiretamente, que os cartunistas franceses “provocaram” o atentado ao publicar charges consideradas ofensivas pelos muçulmanos, causam-me contrariedade. Vejamos alguns exemplos aqui no Brasil.
Em 1997, o bispo Edir Macedo lançou um livro igualmente considerado ofensivo pelas religiões espiritualistas: “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?”. Escrito a partir do ponto de vista de sua doutrina, o livro acaba por classificar pejorativamente os cultos afros e kardecistas. Num caso semelhante, o escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie, em 1989, lançou a obra “Versos Satânicos”, sobre o livro sagrado Alcorão, e teve, no mesmo ano, uma sentença de morte contra si promulgada pelo Aiatolá Khomeini, do Irã. Em 1995, o bispo Sérgio Von Helder, também da IURD, causou furor ao chutar, num programa de TV, uma imagem da santa católica Nossa Senhora Aparecida.
Podemos ver que no caso dos bispos, independente da posição que cada um de nós tenha sobre o assunto, o debate se deu na mídia, nos parlamentos e na Justiça, dentro dos parâmetros do Estado Democrático de Direito. No caso dos franceses do Charlie Hebdo e de Rushdie, a régua foi outra.
Trago esses exemplos para mostrar como situações semelhantes podem ser tratadas e resolvidas de forma diferente. Na França, as charges do jornal chegaram a ser alvo de processos judiciais, onde, assim como o livro do bispo, acabaram liberadas. Já os fundamentalistas decidiram matar os humoristas. Um peso, duas medidas.
Quando um ocidental usa o argumento de que as vítimas “pediram” para ser mortas, ao “desrespeitarem a religião alheia”, está relativizando o valor da vida e da liberdade e alinhando-se, mesmo de boa-fé, com ideologias fundamentalistas e totalitárias; em vez de fazer coro ao “je suis Charlie”, entoa “je ne suis pas Charlie”, cedendo a um sofisma perigoso, embasado na crítica teórica ao conteúdo das publicações, calcado no respeito à diversidade.
Aí é que está: essa não é a questão. A questão é que a vida e a liberdade são valores superiores e não há como tergiversar sobre isso. Se algum religioso brasileiro atingido pelos bispos se achasse no direito de “vingar com o sangue a honra de sua crença”, como nos postaríamos? Eu não hesitaria em dizer “je suis IURD”, independente de minha fé ou de concordar ou não com o escrito ou com o feito.
Para refletir sobre tudo isso, uma boa dica é assistir ao filme Hannah Arendt, sobre o julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, onde a escritora judia alemã trata do (infelizmente ainda atual) conceito de “banalidade do mal’. Então, com certeza, poderemos chegar à conclusão de que, enquanto ocidentais, “nous sommes tous Charlie”, antes de qualquer coisa, em defesa da sacralidade da vida humana e da liberdade, afirmando-as sem relativizações.
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POEIRA DA ESTRADA – Bom ir a um show e constatar que a excelente banda de blues rock de Charqueadas continua em grande forma. “Como pode um homem, se dar sem sentir...”
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br