Foto - Última capa do Charlie Hebdo, antes do atentado.
Nous sommes Charlie?
Mesmo com tanto sendo escrito e falado sobre o atentado terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo, com base nos mais variados pontos de vista, é difícil responder a essa pergunta e, ao mesmo tempo, impossível não escrever e não se posicionar.
Mundo louco esse em que vivemos! Uma menina-bomba mata 20 pessoas na Nigéria. Três franceses muçulmanos assassinam friamente 17 pessoas em Paris: chargistas de uma publicação satírica de esquerda, antireligiosa e laica, três policiais (entre eles uma negra nascida na Martinica e um muçulmano francês) e quatro judeus. É limitado ver esse segundo fato apenas pelo nosso olhar ocidental, europeizado, majoritariamente cristão e católico. Somente sendo um muçulmano, por exemplo, para compreender perfeitamente a indignação provocada pelas charges sobre Maomé.
Já nós brasileiros, a maioria cristãos católicos e evangélicos, podemos perceber isso a partir de charges do Charlie Hebdo sobre o cristianismo. Vejamos uma que abordava o casamento homossexual, numa capa satírica ao catolicismo: colocava Deus sendo sodomizando por Jesus, com um triângulo representando o Espírito Santo fincado no ânus do último. Para nós, algo chocante, ultrajante e inaceitável. Nem nos tempos de O Pasquim (similar brasileiro do Hebdo) veríamos uma charge como essa publicada por aqui.
Mas, enquanto ocidentais, criados em democracias com liberdade de expressão, o atentado foi também cometido contra valores fundamentais e universais da cultura que compartilhamos, brasileiros e latinos, eis que somos, predominantemente, europeus transplantados, miscigenados com africanos escravizados e indígenas dizimados.
Na Europa, décadas atrás, um atentado com número menor de vítimas que esse serviu de pretexto para a Noite dos Cristais. Um judeu polonês assassinou o secretário da embaixada alemã em Paris no ano de 1938. À época os nazistas estavam governando a Alemanha e promoveram uma brutal perseguição contra a comunidade judaica alemã. Na França atual, a direita xenófoba não está no poder, mas sim a esquerda socialista, e a correspondente comoção nacional levou à unidade da nação contra o terrorismo sem ocorrer uma perseguição sistemática aos muçulmanos franceses, que vivem nos subúrbios das grandes cidades do país.
Levando-se em conta o acima escrito, é difícil responder se “nós somos Charlie”. Sim e não, dependendo da pessoa, da sua origem, da sua cultura, da sua religião, da sua visão de mundo. De minha parte, como ocidental democrata que acredita na importância da liberdade de expressão, afirmo: Je suis Charlie. Não creio que a violência criminosa possa ser justificada por qualquer fundamento filosófico, político ou religioso, por mais pertinente que seja. A liberdade de expressão é uma conquista a ser defendida e preservada, e seu aprimoramento deve se dar dentro dos parâmetros de uma sociedade democrática.
Embora seja oportuno lembrar que muito já se assassinou em nome de nosso Deus cristão, creio que os religiosos orientais não podem definir o que deve ser tolerado ou não nas publicações ocidentais ou mesmo usar a força das armas e do terror para impor os preceitos de sua cultura sobre a dos outros.
Em 2015, quando, em maio, completar-se-á 70 anos do final da II Guerra Mundial, o mundo não pode aceitar a volta da intolerância em nenhum de seus matizes. A condenação mundial do atentado, a marcha de milhões de franceses em solidartiedade às vítimas e a edição de cinco milhões de exemplares do Charlie Hebdo em cinco línguas, afirmam esse compromisso.
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br
Primeira capa do Charlie Hebdo após o atentado:
Nous sommes Charlie?
Mesmo com tanto sendo escrito e falado sobre o atentado terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo, com base nos mais variados pontos de vista, é difícil responder a essa pergunta e, ao mesmo tempo, impossível não escrever e não se posicionar.
Mundo louco esse em que vivemos! Uma menina-bomba mata 20 pessoas na Nigéria. Três franceses muçulmanos assassinam friamente 17 pessoas em Paris: chargistas de uma publicação satírica de esquerda, antireligiosa e laica, três policiais (entre eles uma negra nascida na Martinica e um muçulmano francês) e quatro judeus. É limitado ver esse segundo fato apenas pelo nosso olhar ocidental, europeizado, majoritariamente cristão e católico. Somente sendo um muçulmano, por exemplo, para compreender perfeitamente a indignação provocada pelas charges sobre Maomé.
Já nós brasileiros, a maioria cristãos católicos e evangélicos, podemos perceber isso a partir de charges do Charlie Hebdo sobre o cristianismo. Vejamos uma que abordava o casamento homossexual, numa capa satírica ao catolicismo: colocava Deus sendo sodomizando por Jesus, com um triângulo representando o Espírito Santo fincado no ânus do último. Para nós, algo chocante, ultrajante e inaceitável. Nem nos tempos de O Pasquim (similar brasileiro do Hebdo) veríamos uma charge como essa publicada por aqui.
Mas, enquanto ocidentais, criados em democracias com liberdade de expressão, o atentado foi também cometido contra valores fundamentais e universais da cultura que compartilhamos, brasileiros e latinos, eis que somos, predominantemente, europeus transplantados, miscigenados com africanos escravizados e indígenas dizimados.
Na Europa, décadas atrás, um atentado com número menor de vítimas que esse serviu de pretexto para a Noite dos Cristais. Um judeu polonês assassinou o secretário da embaixada alemã em Paris no ano de 1938. À época os nazistas estavam governando a Alemanha e promoveram uma brutal perseguição contra a comunidade judaica alemã. Na França atual, a direita xenófoba não está no poder, mas sim a esquerda socialista, e a correspondente comoção nacional levou à unidade da nação contra o terrorismo sem ocorrer uma perseguição sistemática aos muçulmanos franceses, que vivem nos subúrbios das grandes cidades do país.
Levando-se em conta o acima escrito, é difícil responder se “nós somos Charlie”. Sim e não, dependendo da pessoa, da sua origem, da sua cultura, da sua religião, da sua visão de mundo. De minha parte, como ocidental democrata que acredita na importância da liberdade de expressão, afirmo: Je suis Charlie. Não creio que a violência criminosa possa ser justificada por qualquer fundamento filosófico, político ou religioso, por mais pertinente que seja. A liberdade de expressão é uma conquista a ser defendida e preservada, e seu aprimoramento deve se dar dentro dos parâmetros de uma sociedade democrática.
Embora seja oportuno lembrar que muito já se assassinou em nome de nosso Deus cristão, creio que os religiosos orientais não podem definir o que deve ser tolerado ou não nas publicações ocidentais ou mesmo usar a força das armas e do terror para impor os preceitos de sua cultura sobre a dos outros.
Em 2015, quando, em maio, completar-se-á 70 anos do final da II Guerra Mundial, o mundo não pode aceitar a volta da intolerância em nenhum de seus matizes. A condenação mundial do atentado, a marcha de milhões de franceses em solidartiedade às vítimas e a edição de cinco milhões de exemplares do Charlie Hebdo em cinco línguas, afirmam esse compromisso.
Texto publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br
Primeira capa do Charlie Hebdo após o atentado: