A Questão contra o Código de Trânsito e seus órgãos
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Dentro de nossas vidas, nos deparamos a cada momento com uma decisão diferente. Decisões implicam escolhas. Escolhas implicam preferência. Ao escolhermos comer uma fatia de bolo ao invés do ato de não comer, estamos preferindo todas as consequências imaginadas da escolha preferida – o gosto do bolo, as calorias e nutrientes que estamos ingerindo, por exemplo. E esse processo é natural na vida do homem, o repetimos todo dia.
Além disso, há outra questão: as informações que temos sobre ações aos quais estamos julgando são limitadas. Isso é, a não ser para um ser com onisciência, há informações que nos são omitidas. Assim, todas nossas ações são especulações. Isso quer dizer que não trabalhamos com certezas ao preferir, mas sim com informações escassas às quais possuímos somadas às diversas suposições que fazemos. Logo, criamos com base no que conhecemos – ou achamos conhecer – uma escala ordinal de preferências. Como diria Mises: “Costuma-se dizer que o agente homem, ao organizar suas ações, tem uma escala de necessidades ou de valores em sua mente. Com base nessa escala, satisfaz às necessidades a que atribui maior valor, isto é, às necessidades mais urgentes, e deixa de satisfazer àquelas a que atribui menor valor, isto é, às necessidades menos urgentes. Não há objeção a que assim se interprete o comportamento humano.”¹.
Caso se volte ao exemplo inicial, há a possibilidade de que o processo de fabricação do bolo seja questionável e que sua ingestão gere um desconforto no estômago, fazendo com que nos arrependamos de nossa decisão. Entretanto, isso é algo inerente ao processo de agir, na qual se especula acerca das condições futuras sem nunca possuir certezas. Mises escreveu que: “[...] a ação visa sempre situações futuras e, portanto, incertas. Sendo assim, é sempre especulação.”².
E o que isso tem a ver com o Código de Trânsito Brasileiro e seus órgãos executivos? Bem, no Brasil – bem como na maioria dos países –, existem diversas leis e regulamentações de trânsito contidas (no caso do Brasil) no Código de Trânsito Brasileiro. E o problema com esse conjunto de normas é que elas são uma verdadeira aberração. Uma afronta à voluntariedade, à boa alocação dos recursos – como o tempo –, à capacidade e liberdade do indivíduo de tomar suas próprias decisões, adaptando-se às circunstâncias e especulando sobre a melhor escolha possível.
Uma vez que o futuro é incerto e toda ação é uma especulação, é impossível falar sobre segurança no trânsito, mas, no máximo, sobre contenção de riscos. Contudo, o nosso querido código começa radicalmente contra isso, em puro ato de demagogia como mostra o segundo parágrafo do Art 1°: “ O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.”³. Isso é, eles afirmam de forma categórica que o trânsito seguro – algo que é, por si só, impossível – é um direito e, para completar, ainda esboçam formas de se punir quem está fora dos padrões apregoados por essa utopia. Tudo isso no segundo parágrafo do primeiro artigo.
Além disso, como se ainda não fosse autoritário o suficiente, eles falam em educação no trânsito, como fica claro no Art. 74: “A educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os componentes do Sistema Nacional de Trânsito.”³. Isso quer dizer que, além de achar que possuem o direito e o dever de nos punir por uma suposta e utópica segurança no trânsito, esses órgãos públicos nos tratam como gado, ao achar que devemos ser educados, ao achar que não tempos capacidade de tomar nossas próprias decisões com base nas informações escassas que possuímos, nossos desejos mais urgentes e nossas suposições. Acreditam ser de uma “casta” superior, ter informações especiais e, em suma, saber mais do que nós mesmos sobre nossas preferências.
Contudo, é claro que os técnicos do Estado existem e possuem um embasamento teórico muitas vezes bom. E é também claro que eles não devem acreditar em uma suposta segurança absoluta. Entretanto, é essa ideia absurda de segurança absoluta que os políticos e formuladores de políticas públicas passam ao grande público, e é isso que dá o mais forte embasamento ideológico que permite com que o DETRAN pilhe o cidadão comum. Além disso, por mais que os engenheiros de trânsito façam cálculos sobre a segurança comparando-a com variáveis como velocidade e consumo de substâncias ao dirigir, nunca poderão saber qual a preferência individual de cada cidadão, sua habilidade pessoal de dirigir e o quanto de segurança ele está disposto a comprometer em troca de mais agilidade.
Um leitor atento, no entanto, poderia achar absurda minha ideia de permitir que o indivíduo possa tomar suas próprias decisões acerca da segurança, uma vez que ele tenha muito provavelmente menos conhecimento sobre isso que um engenheiro de trânsito e também por estar pondo em risco as vidas de outras pessoas. Podendo-se somar esse argumento ao de que a vida é o direito mais fundamental e deve ser preservada a qualquer custo.
Quanto a isso, é verdade que a vida é um direito, o mais fundamental de todos, e que a auto-propriedade é um direito vital ao bom funcionamento de qualquer sociedade produtiva e livre. Contudo, esse argumento é falho por algumas razões: a) é inerente à vida a possibilidade da morte; b) é totalmente imoral condenarmos alguém pelos crimes que julgamos que podem cometer, além de criar um precedente terrível; c) devemos punir as pessoas pelo que elas realmente fazem de errado, isso é, pelos danos que elas de fato cometem a outrem, e não pela mera possibilidade.
Isso porque dar a possibilidade de alguém nos punir por danos que podemos vir a fazer – e que podemos muito bem não vir a fazer – é a total destruição da liberdade. Essa ideia nas sociedades modernas - nas quais o Estado possui o monopólio da violência – significa dar total poder ao Estado. Isso porque, uma vez que se abriu o precedente de punir-se por danos aos quais poderemos cometer, a escolha individual – com toda sua falha, pensamento, cálculo econômico e utilitário e valoração – é substituída pela escolha estatal, que possui os mesmos atributos, porém, ao invés de definidos individualmente, definidos através daqueles que comandam o Estado – burocratas, políticos e empresários corporativistas, por exemplo.
Isso também quer dizer que as decisões não mais são livres, não mais representam os pensamentos e valores de cada um, mas sim uma falsa coletividade, a qual é controlada por grupos de pressão inerentes às democracias modernas. Isso é o equivalente à morte da democracia liberal, do poder dos indivíduos, da supremacia dos consumidores, e da transferência do poder a grupos com interesses escusos, tentando levar esse Leviatã para o lado ao qual mais os interessa como é demonstrado pelas claras tentativas de diminuir tolerâncias nas regulamentações de trânsito de forma que se possa arrecadar o máximo possível. Nesse caso, é claro que grupos de pressão, como prefeituras, possuem grande envolvimento.
Para que, mais uma vez, o poder seja do indivíduo livre e pensante, é necessário acabar com essas aberrações morais, sociais e utilitárias que são os diversos conselhos e departamentos de Estado. Essas instituições que só beneficiam aos grupos de pressão com interesses escusos precisam dar lugar às bases de uma nova sociedade voluntarista. Além disso, é necessário que o código de trânsito seja o código da voluntariedade, ou seja: a negação à existência de desapropriações, às regras arbitrárias desse código imoral vigente e ao monopólio de estradas e rodovias.
Essas violações à voluntariedade trazem graves consequências. No caso das desapropriações, elas trazem insegurança social, especialmente aos mais pobres, que por terem menos influência e menos amigos dentro do Estado, são o “elo mais fraco”. Além disso, nunca poderá o governo pagar um preço que compense a desapropriação, pois caso ele atendesse às demandas do proprietário ele poderia simplesmente comprar a propriedade, o que caracterizaria uma troca, e não uma desapropriação. Já no caso das regras arbitrárias, elas são uma clara afronta à realidade pelos motivos já citados, à economia de tempo e à liberdade individual e sua capacidade de tomar decisões. Enquanto isso, o monopólio, além de imoral – quem são eles para determinarem o que podemos fazer e limitar nossa liberdade? –, traz incompetência e dupla tributação – IPVA e pedágios.
Contudo, podem ser criadas dúvidas quanto à capacidade de indivíduos de empreenderem nesse ramo, uma vez que uma estrada ou rodovia passaria por diversas propriedades. Entretanto, esse problema é facilmente resolvido: poder-se-ia criar diversos contornos às propriedades dos que se negam a ceder seu espaço por uma estrada – o que geralmente não aconteceria por ser favorável ao escoamento da produção – ou então criarem-se rodovias aéreas desde que essas não atrapalhassem o funcionamento das propriedades pelas quais passassem. Soluções como essas ocorrem em países como Chile e Singapura.
Além disso, gastos estatais demasiados em infraestrutura beneficiam apenas grandes produtores, já que diminui os gastos de transporte a níveis mais baixos que o natural em uma situação livre. Por conseguinte, os pequenos empresários locais são prejudicados, enquanto as grandes corporações beneficiadas – já que geralmente possuem suas fábricas mais concentradas, necessitando mais de transporte –, tornando seus negócios mais lucrativos à custa dos impostos de toda a sociedade.
Dito isso, pode-se notar que há claras evidências que, além de moralmente superior, por não agredir outras pessoas e suas propriedades, um arranjo voluntarista é sim viável e utilitário – representando uma melhora ao arranjo atual e sua produtividade. Além disso, deve-se tomar cuidado de não cair nas armadilhas que são feitas pelos grupos de pressão cujos interesses são justamente obter benefícios à custa de todos nós, não dando o apoio ideológico que eles necessitam para a manutenção de seus privilégios.
1 – VON MISES, Ludwig. Ação Humana. São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises, 2010, p.127-128.
2 – VON MISES, Ludwig. Ação Humana. São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises, 2010, p.87.
3 – BRASIL. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível pelo site do Governo Brasileiro.