Holofotes e mercadorias do Natal
A melancolia dos rituais de Natal e daqueles de fim de ano de alguma maneira atingem a todos. Penso em três esferas de sociabilidades nas quais conscientes ou inconscientes estamos profundamente inseridos, muitas vezes mais do que desejaríamos estar.
A primeira esfera corresponde ao espaço do eu ou da consciência individual. Trata-se de um lugar no qual combatemos bons demônios, desejos em paradoxos, traumas e toda uma gama de atitudes simbólicas. A angústia natalina, em geral, nos enche de culpa. Não por acaso é neste tempo que nos lembramos da mãe, do pai, dos irmãos, filhos e até do “amigo” oculto. Alguns se lembram de tudo e de todos que deixamos de lado, seja por falta de tempo, desconsideração, fadiga ou intencionalidade mesmo. Aparentemente é natural que nos dias natalinos utilizemos as melhores máscaras jamais utilizadas durante todo o ano. E o uso é constante diante do parente hipócrita, do amigo fingido, do patrão explorador, do vizinho nada gente nada boa e da sogra que é a verdadeira proprietária da patroa. O ego em tais relações se reveste da armadura da repressão e pisa em ovos na tentativa da máscara não cair. Com certa liberdade, mas com muitas limitações o Natal geralmente passa produzindo na maioria dos seres humanos um grande vazio existencial que toma lugar até as festas de final de ano.
Na segunda esfera de sociabilidade temos todo o poderoso processo social de controle proveniente da moral, dos costumes, da tradição e da consciência coletiva. Trata-se de um mosaico de coisas os quais colocam nos seus devidos lugares os grupos, as organizações, as instituições e qualquer conjunto de ações coletivas. É neste campo que não é difícil perceber a grande mentira que é a fraternidade e a caridade provenientes daqueles que foram e são economicamente privilegiados. É neste tempo que estes aproveitam a oportunidade para diminuir a culpa, o desespero e o desconforto em relação ao outro. A culpa como relação humana tem os seus fins e quando coletiva tem maior durabilidade no tempo e no espaço. De todo modo, isso não significa que na consciência coletiva não se encontra fissuras nas quais o indivíduo consegue respirar e andar com as próprias pernas. O Natal é um ótimo ritual para isso: nele as pessoas se modificam, buscam a compaixão, retornam às igrejas, aos rituais, aos mitos e aos símbolos. Muitas se sentem revigoradas, principalmente quando podem ajudar aos outros. Esta ação intencional travestida de caridade dura pouco. Ajuda-se um “coitado, uma família pobre, compra-se um presentinho para uma criança, visita-se o asilo e pronto. Está tudo no seu lugar novamente. Temos a quem ver “quem está na pior” e à francesa sair para o Natal caseiro com a mente tranqüila e esvaziada, até porque auxiliar ao próximo não é fácil, mas sem ele não existe a possibilidade de diminuir o sentimento de culpa que alimenta a sociedade de mercado transformando homens e mulheres em mercadoria.
Por último, é impossível não lembrar a “mão invisível” que opera tanto na primeira como na segunda esfera. É no mercado que o ego com determinados princípios e valores coletivos se encontram em uma complexa rede produtora de desejos. A sociedade “pós-moderna” é essa: um conjunto de relações frouxas, sem ligações de pertencimento, identidade, responsabilidade e reconhecimento do outro que é diferente por natureza. É uma sociedade na qual os indivíduos se rendem às propriedades e às aparências das mercadorias de todo dia. São nas relações de troca e venda, em um mundo repleto de mercadorias que os seres humanos revelam sua aparência em potencialidade. É por isso que nos esforçamos em comprar o “melhor presente” ou uma “lembrancinha”. Não cabe passar os rituais em branco. O aparecer na sociedade do espetáculo tem destas coisas; os holofotes são girados para aqueles que podem adquirir ou trocar presentes reconhecidos economicamente. Talvez, na sociedade dos holofotes, este é o ponto mais alto das relações entre pessoas descartáveis e passíveis de substituição. Não é ao acaso que o Natal é sempre uma espécie de “novidade”, apesar dos indivíduos repetirem as mesmas relações. Deve ser por isso que conseguimos produzir e amadurecer crianças, adolescentes e adultos no intuito da veneração constante de um senhor de vermelho, enjoado e cansado que “passa” lotado de roupas em pleno país tropical. A sociedade da aparência necessita de avatares. São eles que cristalizam as relações baseadas em trocas de mercadorias. Mercadorias utilizadas justamente para potencializar aqueles que sabem fazer uso delas.
De qualquer forma, indivíduos e grupos sociais são obrigados a participar do ritual natalino, de uma verdadeira sociedade de mercadorias regada a presentes com contas a pagar, problemas a sanar, serviços públicos a desejar e insegurança a aumentar. Apesar disso, e mais algumas coisas - corrupção, violência, crueldade, maldade - os bípedes humanos estão indo às compras, encontrando presentes, montando árvores, reunindo em novenas e ceias. Todavia, da mesma forma que já ocorreu no passado, nos esquecemos de toda humildade, compaixão, amor e ternura do nascimento do Cristo. Um Cristo que, apesar de esquecido, trouxe a boa nova e nela opera espiritualmente em cada indivíduo nos desejando silenciosamente, “um Feliz Natal!”